Promotora de festivais de música não pagou ao fisco perto de meio milhão

Auditoria detecta indícios de crime de abuso de confiança fiscal. Administração tributária não deu prioridade ao controlo de festivais de música e actividades artísticas. Indústria movimentou 1500 milhões em três anos.

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A IGF diz que a administração fiscal não deu prioridade ao controlo das actividades artísticas de 2011 a 2014 RG Rui Gaudencio

É uma indústria global e em crescimento, mas ainda de “elevado risco” de fraude e evasão fiscais, mesmo com os avanços tecnológicos nos sistemas de controlo da máquina tributária portuguesa. As actividades de produção de festivais de música e espectáculos culturais são um sector a que o fisco português parece não ter dado particular atenção até há poucos anos, pelo menos até a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) detectar a falta de controlo sobre as empresas e alertar o próprio fisco para a inexistência de um “planeamento específico” sobre estas actividades económicas.

As falhas da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), incluindo o facto de o sector não ter sido uma “prioridade” nos anos da troika, aparecem identificadas numa auditoria realizada em 2015 pela IGF. As conclusões só foram publicadas esta semana pela entidade de inspecção do Ministério das Finanças, depois de o documento receber luz verde em Agosto do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes.

As duas páginas da síntese do relatório fazem o retrato de um sector propício a irregularidades no plano tributário, com indícios de omissão de rendimentos pagos a músicos, declarações por entregar relativamente a artistas estrangeiros, e declarações não entregues por artistas nacionais.

A auditoria cobre quatro anos, de 2011 a 2014, e permitiu identificar que uma empresa não entregou ao fisco 437 mil euros de IRS e IRC retidos na fonte relativamente a honorários pagos a artistas estrangeiros que actuaram em festivais de música. Uma falha que, alertou então a IGF, “constitui indício da prática de crime de abuso de confiança fiscal”.

Por se tratar de informação protegida por sigilo fiscal, o relatório não nomeia a promotora de espectáculos visada, da mesma forma que ali não é dito – nem o Ministério das Finanças o esclareceu ao PÚBLICO – se a situação detectada foi entretanto regularizada. O valor em falta já era referido de forma agregada no relatório de combate à fraude e evasão fiscais de 2015, divulgado pelas Finanças em Junho de 2016, mas desconhecia-se que o montante, de quase meio milhão de euros, se refere a uma única empresa.

Uma das recomendações da IGF passou precisamente por averiguar os indícios, para determinar as eventuais correcções fiscais, proceder às liquidações dos impostos que pudessem estar por pagar e avançar com os “procedimentos contra-ordenacionais e/ou criminais”.

Questionado por escrito através do gabinete de imprensa, o Ministério das Finanças não respondeu em tempo útil sobre os passos dados pela AT relativamente a estes casos. Não se conhecem procedimentos iniciados, nem se as eventuais investigações abertas resultaram em contra-ordenações. O relatório de combate à fraude mais recente, relativo a 2016, é omisso sobre a realidade do sector.

No terreno

À parte da economia informal, resta a imagem oficial de 2011 a 2014: a de uma indústria que ganha cada vez maior “importância no plano tributário”. Os números da IGF mostram que, especificamente em três desses anos, de 2011 a 2013, as actividades movimentaram 1468 milhões de euros em volume de negócios, permitindo ao Estado arrecadar 21 milhões de euros em receita de IRC.

A auditoria centra-se especificamente na tributação dos rendimentos e faz um zoom sobre os festivais de música, a partir das “verificações efectuadas junto de empresas promotoras”.

Além de notar o caso concreto da empresa que deixou por entregar à AT 437 mil euros, a IGF faz a conta a outras situações separadas. Em causa estão 87,9 mil euros que não chegaram a ser retidos em sede de IRS e IRC sobre os rendimentos pagos a artistas (sobretudo estrangeiros) e sobre as comissões pagas aos agentes. É uma referência genérica, não se sabendo se as situações se referem à mesma empresa, a uma concorrente ou a várias. A auditoria dá ainda conta de outros “indícios de omissão” de IRS e IRC não apenas por parte das promotoras de espectáculos, mas também dos próprios artistas portugueses.

Embora a auditoria se foque nos festivais de música, o diagnóstico é mais lato. O inspector tributário Nuno Barroso, presidente da APIT - Associação Sindical dos Profissionais da Inspecção Tributária e Aduaneira, nota que as acções do fisco nos festivais de Verão e noutros eventos locais, como romarias e festas dos municípios, têm sido mais visíveis sensivelmente a partir de 2012/2013 (com controlos sobre o IVA e sobre os rendimentos).

Hoje, diz, os inspectores vão aos principais festivais de música, como o Nos Alive ou o Super Bock Super Rock. É habitual realizarem-se reuniões com os promotores nos dias anteriores aos festivais, para prestar informação sobre os procedimentos que devem ser seguidos pelas empresas, conta Barroso. E nos próprios dias dos festivais o fisco mobiliza equipas para irem às bilheteiras, para recolherem documentos relacionados com os pagamentos dos músicos e para percorrerem as empresas de restauração presentes nos recintos.

A mesma leitura é feita por Luís Montez, da promotora de espectáculos Música no Coração. Instado a comentar as principais conclusões da auditoria, a cara da produtora do Super Bock Super Rock e do Vodafone Mexefest vinca que os festivais de música têm sido alvo de controlo apertado por parte das autoridades. “Tenho as coisas todas em ordem”, refere, sobre o caso concreto da Música no Coração. O PÚBLICO tentou contactar ontem por telefone, sem sucesso, o director da Everything Is New, Álvaro Covões.

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