Rosas da memória para um tempo cativo

A conturbada infância de Zeca Afonso e família é recordada num documentário de Luís Filipe Rocha, Rosas de Ermera, agora em estreia nas salas.

Há um tempo na vida de José Afonso (Zeca na família, como mais tarde para os amigos) que não é muito falado, o da sua infância e juventude. Mas foi nesse tempo que ocorreram episódios de uma trama quase novelesca e que envolvem Aveiro, Angola, Moçambique, Belmonte, Coimbra e Timor. Não só: também Hitler e a II Guerra Mundial, num cenário onde uma família unida se separou para se reencontrar mais tarde, com vivas cicatrizes da guerra e das injustiças do tempo. Essa memória, que já tinha sido contada por João Afonso dos Santos (irmão de Zeca) em O Último dos Colonos, Entre Um e Outro Mar, livro editado pela Sextante em 2015, surge agora num documentário de Luís Filipe Rocha (que em 2015 nos brindou com esse notável western insular que é Cinzento e Negro, editado este ano em DVD) chamado Rosas de Ermera, em estreia nas salas.

De que falam, então, livro e filme? De memórias de um tempo cativo de maravilhas e horrores. Do casamento de José Nepomuceno Afonso (juiz) com Maria das Dores, em 1926, nascem três filhos: João Afonso dos Santos (1927) e José Afonso (1929) em Aveiro; e Mariazinha no planalto do Bié, Angola (1932). Isto por via da itinerância profissional do pai, que há-de levá-los a Moçambique, de 1937 a 1939. Foram, para eles, os anos de paz. “Foi realmente uma espécie de paraíso, Lourenço Marques na altura”, diz João no filme. Ele e Zeca, com 9 e 7 anos, andavam pelas árvores, a brincar ao Tarzan, e Mariazinha, com 5, maravilhava-se com o novo mundo que ali se lhes abria. E havia o Leão, um cão que se tornaria fiel companhia dos rapazes. Durou pouco, tal paraíso. Num concurso onde ficou bem classificado, o pai escolheu ser juiz em Timor, onde não havia “liceu que inspirasse confiança”. Por isso a família dividiu-se: pais e irmã rumaram a Díli, enquanto os rapazes seguiram para Portugal, para continuar estudos, à guarda dos irmãos do pai, primeiro para Belmonte (junto do tio Filomeno, ferrenho defensor de Hitler mas, fora isso, “um sujeito alegre e convivial”) e depois para Coimbra, onde ficariam em casa da muito beata tia Avrilete, que a tudo respondia com a fé.

Do paraíso (Moçambique) passaram uns para o inferno (Timor, com o eclodir da II Guerra) e outros para o purgatório (João e Zeca em Portugal, apartados dos pais e da irmã). A chegada a Díli, no dia 1 de Setembro de 1939, coincide com a invasão nazi da Polónia. Em nota oficiosa datada desse dia, reagiu assim ao facto o governo de Salazar: “A todos se impõe viver a sua vida mas agora com mais calma, trabalho sério, a maior disciplina e união; nem recriminações estéreis nem vãs lamentações.” Mas calma em Timor era coisa impossível, por via da guerra. Apesar de se intitular país “neutro”, Portugal manteve um silêncio cúmplice acerca das invasões militares de Timor. Em 7 de Dezembro de 1941, tropas holandesas e australianas desembarcam em Díli; e em 20 de Fevereiro de 1942, expulsando-as, foi a vez dos japoneses, aliados de Hitler, em expansão militar no Pacífico. O que se seguiu foi terrível. Carlos Cal Brandão testemunhou-o no livro Funo: Guerra em Timor (1946), e João Afonso dos Santos cita-o: “A igreja, as repartições, a biblioteca, tudo é assaltado, nas ruas há montões de destroços, cacos, papéis, cinzas.” Houve violações, humilhações, mortes, um campo de concentração disfarçado de “zona de protecção”. Terror e fome. Escreverá o juiz: “Os japoneses cortaram-nos completamente os víveres. Sim, os portugueses de Liquiçá passaram então meses sustentados apenas, praticamente, pela sua ração de arroz: duzentos gramas de arroz infecto, cozido em água e sal, por dia e por cabeça!” No documentário de Luís Filipe Rocha, assente nas memórias ali tão bem contadas pelos irmãos João e Mariazinha, que é levada pelo cineasta a Timor para um reencontro com os lugares onde então viveu, o horror desses dias é de algum modo suplantado por outras lembranças: o mar de todas as cores visto da varanda de Liquiçá ou o perfume das rosas de Ermera, incomparável a qualquer outro. Talvez pela dolorosa indescritibilidade do resto.

“Nem mil páginas seriam bastantes para contar o que foi a agonia dos portugueses de Novembro de 1942 a Setembro de 1945. Agonia lenta, cruel, obscura e inenarrável”, relatou João Nepomuceno em 1946, num testemunho começado a escrever a bordo do navio Angola e terminado em Belmonte. As rosas de Ermera evocadas por Mariazinha serão o modo de contornar – e derrotar – tão rudes espinhos.

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