Uma noite no cinema de Tarantino

Desde 2014 que o realizador de Pulp Fiction toma conta da programação do New Beverly, uma sala que passa filmes de culto, clássicos e arte-ensaio na Beverly Boulevard.

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Dr. Jekyll & Mr. Hyde, de Rouben Mamoulian (1931), um clássico programado por Tarantino
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A versão blaxploitation de William Crane, que tem muito a dizer sobre raça e classe

A pé, demora meia a hora dos La Brea Tar Pits, no Miracle Mile, ao New Beverly, um cinema de Los Angeles, zona maioritariamente judaica, que programa sessões duplas todos os dias. Para mim, os poços de La Brea são o local onde Arnold Schwarzenegger e um cadáver com explosivos caíam em O Último Grande Herói, filme de John McTiernan. É uma cena ridícula, que goza com e celebra os filmes de acção e quer fazer rir.

O New Beverly é hoje gerido por Quentin Tarantino. Que em parte se formou como cinéfilo a assistir às sessões duplas que ali ocorrem desde 1978. Comprou o edifício em 2007 e sete anos depois tornou-se o programador principal, tendo banido as cópias digitais da sala. Quando tomou conta do cinema, disse ao L.A. Weekly que não havia mal em as pessoas rirem-se das coisas “loucas, estranhas e parvas” que aconteciam nos filmes que passava — como a cena com Schwarzengger -, mas que ninguém “ganhava pontos por rir de um filme só por ser velho”. Mas foi isso que apanhei quando visitei o cinema.

O ambiente e a programação, que junta o culto, o clássico e o artístico, são o que se esperaria de algo onde Tarantino manda. De fora, vêem-se letras a anunciar os filmes em cima da porta, vários cartazes e uma cabine onde um cinéfilo — podia ser Tarantino há décadas no clube de vídeo de Manhattan Beach — vende bilhetes para os filmes e ainda disponibiliza o cartaz do mês. Lá dentro, um balcão vende comida: além de pipocas, cachorros quentes, incluindo uma versão vegetariana que diz ter sido aprovada por Okja, de Bong-Joon Ho, e refrigerantes artesanais.

Virando à esquerda, a sala. Senta 228 pessoas, tem um ecrã não muito grande e enche-se pouco para Dr. Jekyll & Mr. Hyde, de Rouben Mamoulian (1931) e Dr. Black, Mr. Hyde, uma versão blaxploitation realizada por William Crane em 1976, que tem muito de ridículo, sim, mas também muito a dizer sobre raça e classe – e tem cores magníficas.

Antes do filme, o vendedor de bilhetes apresentou a sessão. Com voz de mestre-de-cerimónias, deu a entender que as pessoas estavam ali para verem o primeiro filme, um clássico, e usufruirem ironicamente do segundo. Ainda anunciou sessões vindouras e que haveria trailers e anúncios antigos — um maravilhoso anúncio britânico do gin Gordon’s — e uma curta de Woody Woodpecker (Pica-Pau) antes do filme.

Imediatamente atrás de mim alguém levou a ideia de ironia a peito: com risos mais ásperos do que os do Pica-Pau, não parou de rir em momentos sem piada. Nada tenho contra rir no cinema. Não são raras as vezes em que, em comédias, fico desapontado quando ninguém se ri. E, como prova Mystery Science Theater 3000, a série em que maus filmes são comentados, rir de filmes pode dar excelente comédia. Também acontece muito, em filmes antigos, ficar desconfortável, a ponto de rir, com sexismo, racismo ou homofobia casuais. Mas aí já sei ao que vou.

E não é como se nunca tivesse rido de forma desconfortável em filmes. Já fui, com um amigo, repreendido por dois críticos por rir durante um visionamento de imprensa de A Melhor Despedida de Solteira – “não tem assim tanta piada” – e, anos depois, os nossos risos afectaram um senhor na Cinemateca ao ponto de mudar de lugar para não nos ouvir durante A Oitava Mulher do Barba Azul, de Ernst Lubitsch. Só que esses filmes eram comédias, rir é o objectivo. Ir para um filme com desdém por ele à partida só por ser antiquado, sem rir nas partes de humor e em todas as outras, é diferente, especialmente quando o filme foi seleccionado cuidadosamente por alguém pelas suas qualidades. Aí o riso estraga a experiência cinéfila. E foi o suficiente para me fazer querer adormecer. Foi o que aconteceu.

 

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