Um país, dois partidos do sistema em risco de desaparecerem

A eleição de Trump foi o tiro de partida para uma batalha feroz pela alma do Partido Democrata e do Partido Republicano. Um ano depois, ninguém está mais perto de reclamar vitória.

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O burro e o elefante, respectivamente símbolos do Partido Republicano e Democrata BBC

A Florida já tinha caído para a coluna de Donald Trump, mas os apoiantes de Hillary Clinton que se colaram a uma das largas janelas do bar/restaurante Clyde Frazier’s Wine and Dine, em Manhattan, ainda roíam as unhas à espera de um milagre enquanto olhavam uns para os outros em estado de negação. Ao mesmo tempo, alguns quarteirões mais acima, a uns dez minutos de bicicleta, dezenas de apoiantes de Trump ensaiavam os primeiros gritos de vitória, ainda abafados pelo choque da surpresa de uma noite eleitoral que muitos julgavam arrumada ainda antes de ter começado. 

Um ano mais tarde, as imagens dos apoiantes de Hillary Clinton e de Donald Trump a reagirem à eleição presidencial naquela noite estranhamente amena de 8 de Novembro são a metáfora perfeita para o estado actual do Partido Democrata e do Partido Republicano: o primeiro continua de olhar perdido, a travar lutas internas e a apostar mais num sucesso da investigação sobre a Rússia do que em propostas e candidatos fortes; o segundo segue ainda bêbedo de vitória, sem saber muito bem o que fazer com a tripla maioria que recebeu dos eleitores americanos.

Roupa suja por lavar nos democratas

Se havia dúvidas de que o Partido Democrata ainda tem roupa suja para lavar desde as eleições primárias do ano passado, quando o velho senador Bernie Sanders surgiu como o líder dos jovens progressistas anti-sistema, basta recuar cinco dias, até ao final da semana passada, para se encontrar um exemplo gritante.

A convidada do programa de Jake Tapper, na CNN, era a senadora democrata Elizabeth Warren, que apoiou Clinton no ano passado mas que chegou a ser apontada como a candidata preferida da ala mais progressista antes da entrada de Bernie Sanders na corrida pela nomeação.

O apoio público de Elizabeth Warren a Hillary Clinton só foi anunciado em Junho de 2016, a um mês da convenção nacional e vários meses depois de uma neutralidade que já deixava antever uma fractura no Partido Democrata: progressistas ao lado de  Sanders e Warren e o chamado establishment ao lado de Clinton e Barack Obama.

Um ano e muitas promessas de união depois, Warren chegou ao programa de Jake Tapper na CNN, na passada sexta-feira, e mostrou que, afinal, a roupa suja do Partido Democrata nunca chegou a ser lavada – e que a luta pela nova identidade do partido só está a começar agora.

“Muito rapidamente, senadora. Concorda com a noção de que [as eleições primárias] foram manipuladas?”, perguntou Tapper, referindo-se às acusações de que o Partido Democrata favoreceu Clinton na luta pela nomeação à presidência contra Bernie Sanders. “Sim”, respondeu Warren. Sim – sem mas, nem meio mas.

Quase que se conseguia ver o Presidente Trump a sorrir de smartphone em punho, a salivar enquanto deslizava o indicador até à aplicação do Twitter. Poucos minutos depois, lá estava a mensagem dirigida a Warren (a quem começou a chamar Pocahontas depois de a senadora ter dito que tem antepassados nativos-americanos): “A Pocahontas acabou de dizer que os democratas, liderados pela lendária Desonesta Hillary Clinton, manipularam as primárias! Vamos lá, FBI e Departamento de Justiça.”
A senadora ainda respondeu com uma série de tweets em que lembrou a investigação do FBI às acusações de conspiração com a Rússia, mas até os eleitores do Partido Democrata perceberam que o Presidente tinha acabado de marcar pontos: “Foi você que mudou de assunto, Elizabeth. Você.”, disse a utilizadora Natalie G. Borden; “Foi você quem lhe deu o assunto. Nunca me senti tão desiludida com alguém em toda a minha vida. Não esquecerei”, disse a guionista de programas humorísticos Caissie St. Onge.

Mas a bomba no Partido Democrata tinha rebentado horas antes, num artigo explosivo publicado no site da revista Politico e escrito por Donna Brazile – a mulher que serviu como presidente interina do Comité Nacional do Partido Democrata entre Julho de 2016 e Fevereiro de 2017, indicada logo a seguir à saída de Debbie Wasserman Schultz na sequência da divulgação de e-mails comprometedores do director de campanha de Clinton.

Nesse texto (cuja narrativa teve o aval da senadora Elizabeth Warren), Donna Brazile afirma que o Partido Democrata manipulou as eleições primárias por forma a dar a vitória a Hillary Clinton em detrimento de Bernie Sanders – uma acusação lançada desde o primeiro momento pelos apoiantes do senador e por Donald Trump. 

O ataque de Brazile e Warren, em defesa de Sanders, foi brutal: não só deu munições a Trump para empurrar as notícias sobre a investigação do FBI para o fundo dos jornais, como lembrou a América que o Partido Democrata está muito longe de ser aquela máquina bem oleada que os eleitores sonhavam ter ao seu lado na luta contra a Presidência Trump – e voltou a fazer soar os alarmes entre os analistas que não olham para as eleições de 2020 como um simples resultado da fraca popularidade de Donald Trump nas sondagens.

“[A campanha de Clinton] baseou-se quase exclusivamente na ideia de que Trump disse e fez muitas coisas terríveis para as mulheres, para as minorias, para os latinos, para os negros. Não resultou”, disse o cientista político norte-americano Ruy Teixeira, do Center for American Progress, à U.S. News and World Report. “Temos de ter presente que aquilo que nos deixa indignados, e aquilo a que devemos continuar a opor-nos, não é necessariamente a mensagem que vai produzir o resultado desejado”, sentenciou Teixeira.

Por outras palavras, mesmo que o Partido Democrata se una nos próximos tempos (o que está longe de ser uma realidade), se a sua mensagem para os eleitores for apenas a fúria contra Donald Trump, então Novembro de 2020 pode voltar a ser mais um mês traumático para os Democratas.

Por onde começar nos republicanos?

No lado do Partido Republicano, um ano depois da tão surpreendente quanto esmagadora vitória nas eleições (maioria na Câmara dos Representantes e no Senado e Presidente na Casa Branca), o momento continua a ser tão confuso que é difícil escolher por onde começar.

Tal como no Partido Democrata, os republicanos estão mergulhados numa crise de identidade – e, tal como no caso do Partido Democrata, essa luta está a ser travada contra o establishment. De um lado está o partido da família Bush, de John McCain ou de Mitch McConnell; do outro, uma mistura que vai dos menos influentes libertários aos mais pujantes populismos e à supremacia branca.

E, tal como no Partido Democrata, basta recuar alguns dias para se encontrar um episódio que resume tudo o que está em jogo: o anúncio do senador Jeff Flake de que não vai recandidatar-se nas eleições para o Congresso em Novembro de 2018.

Na hora da despedida, o senador do Arizona fez uma declaração que pode ser interpretada como uma autópsia do partido que chegou às eleições presidenciais do ano passado – ainda ninguém sabe muito bem o que é o Partido Republicano pós-Trump, mas já ninguém duvida de que não é o Partido Republicano dos Bush ou de McCain. “Pode não haver um lugar para um republicano como eu no actual clima republicano no actual Partido Republicano”, disse Jeff Flake.

Isto é importante porque Flake tem sido um dos críticos mais consistentes da Administração Trump no interior do Partido Republicano, e já trabalhou várias vezes com o Partido Democrata no Senado para aprovar leis importantes sobre imigração e as relações com Cuba, por exemplo. Na hora da saída, há duas semanas, Flake não conseguiu esconder que a sua luta no interior do partido chegou ao fim – no próximo ano, nas primárias, teria de disputar a nomeação para candidato do partido ao Senado com pelo menos uma pessoa apoiada pelo movimento pró-Trump, que reparte o seu ódio e desprezo em igual medida pelo Partido Demorata e pelo establishment republicano.

Apesar de as lutas entre republicanos serem tão velhas como o próprio partido, desta vez a ala mais radical e populista tem muitas hipóteses de vencer a batalha e de se impor como a dominante – não se trata apenas de eleger Donald Trump como Presidente, mas também de povoar as eleições primárias do próximo ano com candidatos anti-establishment, empurrando para as margens do partido (ou para fora) os nomes que são hoje vistos como os herdeiros dos conservadores mais tradicionais. 

O aviso foi feito por Peter Wehner, um analista político que fez parte das Administrações Reagan, Bush e George W. Bush: “Há uma luta pela alma do conservadorismo no Partido Republicano. Se este partido for definido por Donald Trump e Steve Bannon, então muitas destas pessoas não vão querer fazer parte dele.” 

Um ano depois da eleição de Trump, quando se esperava que o Partido Democrata já tivesse saído do buraco em que caiu ou que o Partido Republicano estivesse a aproveitar as suas maiorias para mudar radicalmente o país deixado por Barack Obama, a verdade é que há hoje mais pontos de interrogação do que naquela noite estranhamente amena nas ruas de Nova Iorque. Se nada mudar até lá, a próxima eleição para a presidência dos Estados Unidos da América vai ser como uma daquelas finais de futebol em que ambas as equipas fazem tudo para perder, mas no final uma delas tem mesmo de levar a taça para casa.

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