Eu quero falar com o Presidente Trump

Os Estados Unidos não devem ir para o exterior à procura de “monstros para destruir” (na feliz expressão de John Quincy Adams) mas tratar antes dos demónios que têm dentro do país.

Em 2008, depois da eleição de Barack Obama para Presidente dos Estados Unidos, tornou-se famosa uma anedota. Um homem dirigiu-se à Casa Branca no dia seguinte ao sufrágio e pediu para falar com o Presidente George W. Bush. O segurança respondeu: mas o Presidente já não é Bush agora é Obama. Cerca de 24 horas depois o senhor voltou ao local com o mesmo pedido. O guarda respondeu: outra vez? Já lhe disse que agora é Obama e não Bush. Terceiro dia, a mesma cena, mas desta vez o segurança perdeu a calma: porra! Já lhe disse que o Presidente já não é George W. Bush é Barack Obama!  Resposta do individuo: eu sei, eu sei, mas não se importa que venha cá todos os dias? Sabe tão bem ouvir isso.

É pouco provável que o episódio se tenha repetido depois da eleição de Donald Trump como 45.º Presidente dos EUA faz agora um ano. Em muitos aspectos o novo inquilino da Casa Branca é tão diferente do seu antecessor como o dia é da noite, ou como o sol é da chuva. Todavia, eles têm algo essencial em comum: assumiram a presidência do país numa era de transição de poder no sistema internacional, com o declínio relativo da América e a ascensão de outra potências – como a China e a Índia –, e tiveram de adaptar-se a estas novas circunstâncias, desde logo reconhecendo que existem limites ao poder dos Estados Unidos.

Este aspecto é essencial para perceber que a Administração Trump tem vários elementos de mudança, e mesmo de ruptura, no que diz respeito à política externa dos EUA, mas contém também várias continuidades.

Comecemos pelas segundas. Barack Obama foi eleito num período de mudança estratégica da América provocada pela erosão do poder do país na sequência do desastre nas guerras do Iraque e do Afeganistão. A resposta foi a adopção de uma nova estratégia que podemos chamar de “duplo R” – Retrenchment e Rebalancing – que, ao mesmo tempo, reduziu substancialmente o envolvimento externo dos Estados Unidos e deslocou a sua prioridade do mundo euro-atlântico para a Ásia-Pacífico de forma a conter a ascensão da China. Donald Trump não alterou esta orientação, sendo a “América Primeiro” sobretudo uma estratégia de “retraimento radical”, e não tanto isolacionista, ao mesmo tempo que permaneceu a prioridade asiática e chinesa, chegando mesmo a afirmar no seu manifesto eleitoral (correctamente) que “lidar com a China, juntamente com a Rússia, continuará a ser o maior desafio a longo prazo”. 

Parece ainda haver alguma semelhança relativamente ao modelo de ordenamento internacional, com Obama e Trump a inclinarem-se para uma certa forma de Engagement, ou seja, para um acordo entre a potência dominante (os EUA) e as potências de “segunda ordem” (a China e a Rússia) quanto à criação de uma ordem mundial que corresponda minimamente à preferência de todos os principais Estados (a este respeito diga-se que a retórica inflamada de Trump contra a China destina-se a força-la a negociar e não a provocar um confronto, embora este não seja de excluir caso os chineses continuem a “fazer batota”).

Finalmente, ambos atribuíram grande prioridade às questões internas em detrimento da política externa, subordinando a segunda à primeira. Para os dois, os Estados Unidos não devem ir para o exterior à procura de “monstros para destruir” (na feliz expressão de John Quincy Adams) mas tratar antes dos demónios que têm dentro do país. Barack Obama disse que a mudança de regime começava em casa e só estava disponível para “liderar na retaguarda” no plano internacional. Donald Trump prometeu pôr a América em primeiro e torná-la grande outra vez.

No que diz respeito às mudanças, ou rupturas, deve destacar-se numa primeira linha a concepção de ordem internacional de cada um. Se eles parecem estar de acordo relativamente ao seu modelo ordenador não podiam divergir mais quanto ao que deve ser a sua natureza e arquitectura. A ordem de Obama era a criada pelos EUA no pós-II Guerra Mundial a partir dos seus valores, assentando no pluralismo, no multilateralismo, no comércio livre, nas instituições internacionais universalistas, nas organizações de integração regional, nas alianças permanentes e na democracia liberal. A de Trump é nacionalista, anti-multilateralista, proteccionista, de Estados soberanos egoístas que não aceitam nenhuma limitação à sua liberdade de acção externa como por exemplo a decorrente das organizações internacionais ou das alianças permanentes, não normativa e a-ideológica.

Outra linha importante de mudança está relacionada justamente com o último ponto. Até Donald Trump a democracia liberal era a fonte de legitimidade internacional. O actual Presidente desvaloriza as relações com as outras democracias em benefício de uma aproximação a Estados autoritários, como a Rússia de Vladimir Putin. Para ele é mais relevante contar com os russos para pagar o custo da manutenção da ordem mundial, conter a China, combater o islão radical e resolver a guerra da Síria do que perder tempo com as frouxas e deploráveis democracias que não conseguem tratar de nada, como se viu, segundo ele, na Bósnia, no Kosovo, na Geórgia, na Líbia, na Ucrânia, ou mesmo na Coreia do Norte.

Finalmente, para referir apenas três grandes exemplos, Trump mudou a sua relação com os aliados permanentes. Ele é (e tem sido há cerca de três décadas) um forte crítico destes tipo de aliados, chamando-os de free riders que andam à “boleia” da segurança fornecida por Washington sem estarem disponíveis para pagar por ela e ainda por cima aproveitando-se disso para terem enormes excedentes comerciais com os Estados Unidos. Dentro desta linha, foi o primeiro a questionar o compromisso norte-americano com o artigo 5.º da NATO e, indo mais longe, a abandonar o apoio à integração europeia, vendo a UE, e acima de tudo a Alemanha, numa perspectiva adversarial.

Estas continuidades e mudanças coexistem até ao momento actual, não sendo ainda certo qual será a total extensão de cada uma delas. Donald Trump tanto pode vir a ser um revolucionário como um continuador. Mas, à cautela, o homem da anedota de 2008 devia voltar à Casa Branca e dizer: “Eu quero falar com o Presidente Trump; quero aconselhá-lo a escolher a continuidade na política externa norte-americana”. Assim o mundo talvez fosse apesar de tudo um pouco mais de Vénus e um pouco menos de Marte.

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