A estratégia de comunicação do Presidente Marcelo

Os incêndios de Junho e Outubro foram o momento em que o modelo de comunicação do Presidente melhor se afirmou.

Os discursos proferidos pelo Presidente Marcelo e pelo primeiro-ministro António Costa após os incêndios de Outubro, e as intervenções públicas de ambos nos dias seguintes, produziram reacções e interpretações que dominaram as agendas política e mediática com efeitos ainda impossíveis de avaliar na sua totalidade. A nova realidade política criada a partir desses acontecimentos possui uma natureza essencialmente discursiva e performativa, já que vive mais da interpretação das palavras e dos gestos de cada um dos dois protagonistas do que de decisões e acções concretas.

Esta nova realidade tornou evidente a existência de dois modelos de comunicação distintos, baseados em estratégias diferenciadas por parte do Presidente e do primeiro-ministro. O modelo de comunicação do Presidente corresponde ao modelo centrado nos media, a que os autores americanos Blumenthal (1980) e Pfetsch (1998) chamam “campanha permanente”, comum em sistemas presidencialistas como os EUA. Neste modelo, a estratégia de comunicação é centrada na personalização e na visualização da figura do Presidente através da televisão com recurso a técnicas de marketing político. O enfoque é colocado na dramatização e na exploração dos aspectos da personalidade do Presidente mais adequados ao interesse jornalístico devido à dimensão humana que comportam. O modelo oferece um produto simbólico — por exemplo, afectos e emoções — a um público emotivo e instável.

A substância da mensagem é neste modelo secundária e a política é vista como um jogo entre pessoas, em vez de confronto de ideias (o dissenso entre Marcelo e Costa assumido por fontes de Belém e por fontes do PS, traduzido na disputa sobre quem ficou mais “chocado”, é exemplo desse jogo). As acções políticas são aqui construídas simbolicamente, por exemplo, mostrar o Presidente misturado com o povo de modo a criar uma oportunidade para salientar a importância do papel do Presidente no país ou no estrangeiro, ao mesmo tempo que dão dele uma imagem de atenção aos assuntos do país. A preocupação essencial desta estratégia é conseguir cobertura mediática favorável e apoio popular.

O modelo de comunicação centrado nos media personalizado pelo Presidente Marcelo passa por uma “desintermediação”, isto é, pela comunicação directa com públicos alargados através da televisão, curto-circuitando os partidos e o Parlamento e neutralizando a mediação profissional dos jornalistas. O Presidente fala quase sempre em ambientes de rua, sejam os locais ardidos pelo fogo, sejam entradas e saídas de eventos onde as televisões o acompanham ou o esperam e é nesses ambientes, rodeado por jornalistas e por povo anónimo, que se pronuncia sobre quase tudo, desde as questões concretas da governação às questões menos simples dos poderes presidenciais. Os jornalistas limitam-se, na maioria das vezes, a fazerem de “pé de microfone” porque o Presidente constrói e desconstrói o seu próprio discurso.

Os incêndios de Junho e de Outubro deste ano foram o momento em que o modelo de comunicação do Presidente melhor se afirmou, quer nos momentos em que as tragédias ocorreram, quer nas “réplicas” a que deram origem — a revisitação dos locais, os encontros com o povo e os autarcas, a promessa de um Natal vivido com as vítimas da tragédia. 

As manifestações de afecto para com as populações, as selfies e os abraços a quem dele se aproxima, sempre rodeado de televisões e de fotógrafos a cujas perguntas não se furta, antes suscita, são momentos que o Presidente escolhe para as mensagens políticas que pretende dirigir já não ao povo dos abraços e das selfies mas ao Governo, aos partidos e aos comentadores. Esta estratégia foi particularmente visível quando o Presidente decidiu clarificar perante os jornalistas o seu conceito de “solidariedade institucional” e as condições da sua recandidatura: para Marcelo, a solidariedade institucional já não é, como antes, entre Presidente e Governo, passa por estabelecer um "compromisso com os portugueses". Quanto à sua recandidatura a um segundo mandato, a reforma da floresta e a prevenção dos fogos podem ser a razão e a justificação para que ela se verifique.

No modelo de comunicação do Presidente Marcelo os afectos são a coreografia da mensagem política e o elemento essencial da afirmação da sua autoridade política e da construção da imagem presidencial. O estilo do Presidente sobrepõe-se à substância da política. Os media, em particular, a televisão, são instrumentos essenciais no sucesso deste modelo.

Por contraste, o modelo de comunicação do Governo tal como representado pelo primeiro-ministro António Costa centra-se no enquadramento político dos assuntos com o objectivo de mobilizar o consenso público e influenciar a cobertura jornalística. Neste modelo, o objectivo fundamental da produção de mensagens é explicar as políticas governamentais, divulgar informação de interesse público, mobilizar o público e os apoiantes, criar confiança no Governo e tornar as mensagens compatíveis com os pré-requisitos institucionais do processo político. O objectivo é também conservar o poder político e legitimar as decisões do Governo. 

Trata-se de um modelo que utiliza técnicas retóricas e simbólicas na produção de mensagens, distintas das usadas no modelo centrado nos media e na personificação dos afectos. Ao contrário da estratégia pró-activa do modelo de comunicação do Presidente Marcelo, a estratégia de comunicação do primeiro-ministro António Costa é reactiva e centrada na substância das políticas e não no estilo do protagonista que é racional, ao invés de personalizado e emotivo.

As intervenções de Marcelo e de Costa após os incêndios de Outubro corporizam os dois modelos de comunicação atrás descritos e, embora se adeqúem aos diferentes papéis que cada um ocupa no sistema político português, traduzem sobretudo duas personalidades diferentes e duas maneiras distintas de se relacionar com os media e de encarar a actividade política.

Recuando a anteriores mandatos presidenciais no Portugal democrático, encontramos nas presidências-abertas de Mário Soares elementos fundadores do modelo de comunicação centrado nos media e na personificação na figura do Presidente, tal como praticado por Marcelo. Com Soares, o simbolismo da função residia sobretudo na transferência da sede e dos rituais da presidência para o interior do país, onde o Presidente se instalava e convivia durante semanas com as populações, as autoridades locais e os jornalistas. Nenhum outro dos Presidentes anteriores — Eanes, Sampaio, Cavaco Silva —, não obstante os dois últimos terem replicado as presidências-abertas em “presidências temáticas”, centrou nos media e no povo a sua estratégia de comunicação.

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