"Brexit", Catalunha, Trump: ensaio de uma definição de globalização

O separatismo escocês, catalão, lombardo e flamengo é um resultado quase inerente à globalização.

1. O sentido desconcertante de eventos políticos, por todo o lado, tem levado muita gente boa, sabedora e responsável a perguntar se a “era da globalização” não estará a chegar ao fim. Não estaremos a retornar a um modelo isolacionista, nacionalista e particularista? Apesar do grande projecto “one road, one belt” e da liderança que Xi Jinping quer atingir, apesar do sonho do califado e o projecto jihadista terem dimensão universal, o Ocidente está muito impressionado pela sucessão de desenvolvimentos políticos de sinal centrífugo e, em particular, de três: o "Brexit", a Catalunha e a eleição de Trump. Estes três revezes, intercalados por sucessos de forças nacionalistas em eleições esparsas, seriam a prova de que chegou o ocaso daquilo a que, efemeramente e com sentimentos multívocos, aprouve chamar-se a “globalização”. Eis o que considero um manifesto e perigoso erro de análise, que merece a pena denunciar e pôr em evidência.

Antes do mais, importa esclarecer que não entendo a globalização como um puro processo de integração económica densa e vertiginosa, alicerçado numa simples e crescente liberdade de comércio mundial. A globalização é um processo de integração tecnológico e cultural, político e humano, que passa, essencialmente, pela dissolução progressiva da dimensão humana e física do espaço na dimensão humana e espiritual do tempo. É essa a minha modesta visão da globalização. Trata-se no fundo da materialização política, civilizacional e tecnológica do que o vulgo cientificamente iletrado – em que me incluo – julga ter sido o grande contributo de Einstein: fazer-nos cientes da conexão inextricável entre as dimensões do espaço e do tempo. Escreveu lapidarmente Borges, o maior dos argentinos: “antes as distâncias eram maiores porque hoje o espaço se mede em tempo”.    

2. Quando venceu o "Brexit", foram muitos os que assinalaram, não apenas o fim da União Europeia, mas da própria globalização. Huntington, no seu “Choque de Civilizações”, havia propugnado que a globalização se faria por integração dos velhos Estados em grandes blocos regionais mundiais e que tais blocos, naturalmente, disputariam e negociariam entre si. Ora, a saída do Reino Unido da UE significava precisamente o abandono dessa integração estratégica e o regresso às fronteiras do velho Estado nacional. Eis um erro rotundo de percepção. O grande lema da campanha dos “Brexiteers” era justamente a “global Britain”; era retirar a velha Albion dos grilhões limitativos e cerceadores da UE e libertá-la, qual jangada de pedra, para os mares globais. Nem todos estarão conscientes, mas no referendo em causa, um moçambicano ou paquistanês que habitasse há mais de 2 anos em Londres (por ser da Commonwealth) tinha direito de voto, mas um inglês a trabalhar há dez anos em Portugal não dispunha desse direito. Ironia tipicamente britânica: até os cadernos eleitorais eram globais! Claro que Cameron e os seus sequazes também eram globalistas, embora justamente pela via da inserção nos grandes espaços regionais.

3. No caso da Catalunha, são recorrentes os clamores de um regionalismo e provincianismo antiglobal. Também aqui intercede um erro de percepção. O separatismo escocês, catalão, lombardo e flamengo é um resultado quase inerente à globalização. Já aqui expliquei que, quando não existia a UE como grande bloco regional, com o poder exclusivo de negociar tratados de livre comércio em nome dos 28, devidamente representada em todas as cimeiras mundiais, estas regiões-nação tinham um interesse estrutural em pertencer a um grande Estado nacional. Um Estado que fosse uma potência económica e industrial com capacidade de movimentação no palco global; isto valia para a Baviera, para a Lombardia, para a Catalunha, para a Escócia. A partir do momento em que as potências económicas europeias integram as suas políticas num grande bloco regional, aquelas regiões deixam de ter interesse em ter de passar pelo filtro do nível intermédio. Se Barcelona ou Edimburgo podem estar directamente representadas em Bruxelas, à mesa do Conselho e da Comissão, para que precisam de passar pelo crivo de Madrid ou de Londres? Ainda para mais, quando regiões ou países muito mais frágeis (Malta, Chipre, Estónia, Eslovénia) detêm essa prerrogativa! Nunca esquecer que a globalização foi, quase desde o início, uma “glocalização”, adjudicando simultaneamente poder ao centro e às periferias e retirando poderes ao nível intermédio do Estado nacional. É bem sabido quão pernicioso considero o separatismo catalão, mas seria um grave erro julgar que ele não é ainda um efeito estrutural e institucional da lógica política da globalização.

4. O caso mais difícil é decerto o de Donald Trump e do seu fechamento aos tratados climáticos, ao livre comércio ou à política migratória. Mas fazer de novo a América grande e grandiosa representa afinal uma visão global da posição e do papel da América. Mais do que isso, quem faz política à velocidade de vários tweets ao dia, não está apenas a usar as ferramentas da vida global contra a ideologia “globalizadora”. Não! Está, claro, a falar para muitos milhões de americanos, mas também prega, directamente e em tempo real, para a população global (onde decerto tem mais adeptos do que muitos suspeitam). Um presidente isolacionista promulga decretos e assina ordens executivas. Se lança tweets, com zelo diário e religioso, dirige-se a um público global, está a fazer política global e a criar uma opinião pública globalizada (mesmo que de oposição).

5. A Websummit tomou conta de Lisboa e hoje passam cem anos sobre a revolução de outubro, que, na tradição imperialista russa e com a soviética formulação socialista, não deixou de ser internacionalista e globalista. Talvez não seja espúrio lembrar que certos movimentos, parecendo simples ímpetos e impulsos de regressão, estão profundamente imersos no espírito do seu tempo. Mais do que na física do seu espaço.

Não 

Puigdemont. A rocambolesca fuga para Bruxelas, a contratação de um advogado de etarras, o abandono de muitos companheiros, a simulação de um exílio forçado. Tudo mostra cobardia e falta de estatura política. 

Não

Massacre no Texas. Os americanos, entre o terrorismo e os actos de loucura dos intocáveis portadores de armas, continuam a sofrer ataques horrendos. O ano de Trump não foi o ano da segurança prometida.

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