Pirlo, o pensador

Um dos grandes médios do futebol mundial acabou a carreira aos 38 anos.

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Reuters

“Sou uma espécie de cigano nómada”, escrevia Andrea Pirlo em 2014 na autobiografia com o cartesiano título “Penso, quindi gioco” (“Penso, logo jogo”). “Sou um médio que está sempre à procura de um canto sem ninguém, onde possa estar sozinho por um momento, sem uma marcação sufocante a fazer sombra. Tudo o que eu quero são alguns metros quadrados só para mim, um espaço onde professar a minha crença: pegar na bola, dar a bola a um colega e o colega marcar. Chama-se assistência e é a minha forma de espalhar felicidade.” Em mais de 20 anos, Andrea Pirlo fez muita gente feliz, desde Brescia, onde começou, até Nova Iorque, onde cumpriu neste domingo o último minuto da sua carreira.

Era uma despedida anunciada. Com 38 anos, Andrea Pirlo já tinha dito que esta seria a última época da sua longa e brilhante carreira, que iria durar enquanto durasse a carreira do New York City FC nos “play-off” da Major League Soccer. Acabou no jogo da segunda mão das finais da Conferência Este com os Columbus Crew, do português Pedro Santos. Os nova-iorquinos ganharam esse jogo por 2-0, mas não conseguiram anular a desvantagem de 4-1 da primeira mão, e Pirlo entrou já em tempo de compensação, sobretudo para a consagração, mas, também, para tentar encontrar o tal espaço em campo que sempre andou à procura, fosse com uma linha de passe que mais ninguém via, ou um remate com uma trajectória que ninguém senão ele conseguiria desenhar.

Chamaram a Pirlo, o arquitecto, o maestro, o metrónomo, o professor, tudo acunhas mais que perfeitas para aquele que cristalizou como poucos o que os italianos chamam de “regista”, o realizador. Mas nem sempre foi assim. Desde os tempos da formação do Brescia que olhavam para Pirlo como um talento maior, e na primeira época a sério como sénior, conduziu a equipa lombarda de regresso à Série A italiana. Mais um ano e já estava no Inter de Milão, mas não se deu muito bem com os “nerazzurri” e foi sendo emprestado, primeiro à Reggina, depois ao Brescia a meio de 2000-01. E foi nesta altura que se deu a transformação.

Durante estes anos, o Brescia, longe de ser um grande de Itália, conseguia atrair talento. Chegou a ter Guardiola durante uns tempos, e, entre 2000 e 2004, teve aquele que era um dos mais talentosos avançados italianos da sua geração, Roberto Baggio, que se tinha zangado com a Juventus e escolhera o Brescia. Baggio era um “trequartista” (tal como Pirlo), um segundo avançado ou um médio ofensivo, e era ele o centro de gravidade do Brescia, mesmo já depois dos 30. Carlo Mazzone, o treinador, teve de arranjar espaço para ele e para o jovem Pirlo na mesma equipa, e recuou o jovem para uma posição mais recuada no meio-campo. “Toda a equipa se riu. Mas eu obriguei-os a dar-lhe sempre a bola e disse-lhe para tirar a bola aos colegas”, contava Mazzone.

Dessa meia-época no Brescia, Pirlo ficou com o papel que iria ter sempre e que lhe valeu títulos e admiração planetária. O AC Milan aproveitou o que o Inter não quis e, com Pirlo durante uma década, ganhou, entre outras coisas, dois títulos de campeão italiano e duas Ligas dos Campeões. Em 2011, os “rossoneri” achavam que Pirlo estava velho e deixaram-no sair, sem contrapartidas, para a Juventus, e para quatro títulos consecutivos com a equipa de Turim. Depois, foi dar os últimos toques em mais três épocas no New York City FC.

A selecção italiana também beneficiou de Pirlo, o “regista”, que chegou às 116 internacionalizações, o quarto de sempre, a par de Danielle de Rossi e atrás de Buffon (173), Cannavaro (136) e Maldini (126). Ele conduziu a “squadra azzurra” até ao título mundial em 2006. Numa disputadíssima meia-final com a anfitriã Alemanha, chegava-se aos 119 minutos sem golos e com os penáltis iminentes. Pirlo encontra um par de metros quadrados sem ninguém para se arrumar à entrada da área alemã, usa a visão periférica para descobrir Fabio Grosso no coração da área e golo (Del Piero ainda faria o 2-0).

Na final, depois de 1-1 em 120’ e uma cabeçada de Zidane pelo meio, assumiu a responsabilidade de marcar o primeiro dos penáltis na final contra a França. Barthez, que estava na baliza francesa, bem tentou desconcentrá-lo, mas Pirlo manteve-se impassível. O francês atirou-se para a sua direita, Pirlo atirou para o meio. Estes dois momentos descrevem na perfeição o que Pirlo foi no futebol durante mais de 20 anos.

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