Stepan Svirdov, uma história da União Soviética

Cresceu na colectivização, viveu a guerra, lamentou a desestalinização, odiou a Perestroika e devotou-se a Putin. Stepan Svirdov, 90 anos, uma história de vida num século turbulento.

Foto
Recriação de uma batalha da II Guerra na Praça Vermelha, em Moscovo Maxim Shemetov/REUTERS

A configuração do rosto de Stepan Nikorovivh Sviridov denuncia a sua origem cossaca, as suas mãos rudes testemunham uma vida dura, os seus olhos brilham quando fala da União Soviética e expressam nostalgia quando invoca esse tempo previsível, monocórdico e seguro que há muito deixou de existir. Stepan tem 90 anos e viveu quase tudo o que um russo do século XX podia viver.

Viveu a dureza da colectivização e do trabalho nos sovkozes, viveu a dureza da II Guerra Mundial, viveu o auge do estalinismo nos anos da reconstrução, viveu o modelo de trabalho disciplinado e mecânico das fábricas comunistas, viveu o conforto do estatuto dos funcionários públicos do regime, viveu o reviralho da URSS quando Nikita Khrutchov denunciou o culto da personalidade de Estaline, viveu a agonia do sistema e a destruição da utopia que moldou a sua forma de ver o mundo e viveu os anos do colapso soviético. Stepan vive agora sozinho numa casa não muito longe do centro de Volgogrado e tem saudades. Tem também esperança no futuro do seu país: “Vladimir Putin foi o melhor presidente de todos os presidentes da Rússia que conheci”.

Stepan nasceu em Abril de 1927. Lenine tinha morrido três anos antes e Estaline preparava-se para avançar com a colectivização forçada das propriedades agrícolas. Na sua aldeia natal, um pequeno povoado a dez quilómetros da cidade de Mihailovka, todos os donos de terra tiveram de ceder a sua posse ao Estado que ali criou um sovkoze. Até ao início da invasão da União Soviética pelas tropas nazis, em 1941, a vida dos Svirdov não deveria ser diferente da dos milhões de sovkozniky espalhados pela URSS. Toda a família trabalhava na terra. Pelo menos até ao dia em que Moscovo convocou todos os homens disponíveis para a Grande Guerra Patriótica que se adivinhava.

Foto
Stepan Svirdov, em sua casa DR

Aos 14 anos, és um homem

Em Dezembro de 1941, com 14 anos de idade, Stepan é obrigado a deixar a escola. O seu pai e os seus três irmãos mais velhos partiram para as fileiras do Exército Vermelho. Ficou com a mãe e cinco irmãos e irmãs mais novas, uma delas com apenas três meses de idade. “Um dia, levaram-me para aprender a trabalhar com tractores e disseram-me: tu agora és um homem, vais ter de trabalhar tanto como um adulto”, recorda.

Em Abril, a sua formação como tractorista tinha acabado. Stepan lembra-se desse dia: “Fazia 15 anos e quis ver a minha família, que estava a 15 km. Já não os via há muito tempo. E o meu supervisor não deixou”. Trabalhar como um adulto “era trabalhar todos os dias da semana 11 a 12 horas por dia”. Dormiam em vagões ao lado das hortas que cultivavam. A brigada dos rapazes de um lado, a das raparigas de outro. Homens adultos não havia. Só idosos sem força para combater.

Na Primavera de 1942, a invasão nazi da URSS entrou na segunda fase. Desta vez, a guerra rumara para os territórios onde viviam os Stepanov. Mihailovska ficava a 90 km de Estalinegrado (actual Volgogrado), uma cidade industrial estendida ao longo das margens do rio Volga. Essa circunstância geográfica foi uma das suas condenações. Ter uma estação ferroviária importante também. Stepanov lembra-se das marchas erráticas de colunas de refugiados em fuga dos alemães. Lembra-se do medo que se instalou na aldeia quando deixou de haver dúvidas que a guerra estava para breve. E lembra-se do momento em que a certeza de confirmou.

No dia 24 de Julho “ouvimos o barulho de aviões a aproximarem-se e não sabíamos se eram russos ou alemães. Pouco depois, percebemos que estavam a bombardear Mihailovka, que eram alemães”. O pânico instalou-se. As aldeias vizinhas a sul da de Stepanov começaram a ser invadidas por tropas romenas, aliados dos alemães, que protegiam o flanco norte do avanço para Estalinegrado. “Todos os dias bombardeavam a linha de caminho-de-ferro”, recorda.

As autoridades quiseram retirar os habitantes das aldeias para lugares seguros. “Nós nunca quisemos. A guerra estava ali ao lado, mas o nosso sovkoze nunca parou”, diz com o dedo em riste. Apesar do perigo constante. Um dia, as brigadas de trabalho que agora eram compostas apenas por adolescentes ouviram ao longe o roncar de aviões e desataram a fugir. Muitos deitaram-se no chão. Stepanov escondeu-se atrás de um poste. “No momento em que um dos Messerschmitt [um caça alemão] passou por mim, ele virou e voava tão baixo que pude ver o piloto. Era muito jovem”, recorda. Pouco depois, ouviram-se explosões na aldeia mais próxima. Uma escola transformada em hospital tinha sido atacada.

Operação Uranus

No estertor do Verão, Stepanov mudou de vida: teria de transportar numa carroça puxada por cavalos vegetais frescos para uma fábrica em Mihailovka. Nessa altura, já Estalinegrado tinha sofrido o violento bombardeamento do final de Agosto, que matou 40 mil pessoas e deixou uma parte da cidade reduzida a escombros. Os alemães estavam a empurrar os russos para o Volga e a resistência tenaz do Exército Vermelho tornara Estalinegrado num campo de barbárie que em 200 dias matou dois milhões de soldados dos dois lados – para lá de um número incerto de vítimas civis. “Todos os dias ouvíamos os bombardeiros passar ao longe”, lembra Stepanov.   

Poucas semanas depois de os alemães entrarem em Estalinegrado, os soviéticos começaram a pensar numa resposta. Antes de Outubro tinham encontrado uma solução: uma força partiria do Norte e romperia as defesas romenas; outra partiria do Sul. Quando se encontrassem, os alemães ficariam cercados em Estalinegrado.

Um dos pontos de partida da operação Uranus, a Norte, ficava perto de Mihailovka. De noite, começaram a chegar comboios com armas e munições. De dia, eram transportados em carroças para uma floresta junto a um dos afluentes do Volga. “Disseram-me para fazer assim: saía de manhã com os legumes para a fábrica, depois ia à estação, carregava o material de guerra, deixava-o na floresta e voltava ao sovkoze”, recorda Stepanov. E os alemães não suspeitavam de nada? “Estavam obcecados com Estalinegrado”, diz.

De repente, “na noite de 19 de Novembro ouvimos um barulho ensurdecedor, saímos do celeiro onde dormíamos e reparámos que o céu estava brilhante com os obuses disparados dos nossos canhões”, recorda. A operação Uranus estava lançada e em breve os alemães ficariam cercados em Estalinegrado.

“Começámos a ver cada vez mais colunas de prisioneiros. Primeiro alemães. Depois romenos, esfarrapados e famintos, que nos pediam pão. Milhares morreram de doença ou gelados”, recorda Stepanov. Em dois meses, a resistência alemã sucumbiu. A mais sanguinária batalha da História acabaria em Fevereiro.

Oito anos soldado

Stepanov soube da notícia três dias depois. A 5 de Fevereiro de 1943. Pouco depois, quando fez 17 anos, seria a sua vez de ser mobilizado. “Fui para a escola de atiradores, em Ufa, nos Urais. Mas quando acabei o curso, a guerra tinha acabado”, recorda.

Acabara a guerra, mas não o serviço militar, que para ele duraria oito anos. Entre o fim do curso e 1952, Stepan esteve destacado em Port Arthur, um protectorado russo no Mar Amarelo, que nesse ano passou para a China. Tornara-se soldado de uma grande potência. Mas queria regressar à vida civil. “Queria estudar e trabalhar”, lembra.

Regressou às margens do Volga. Não à aldeia perto de Mihailkova, mas a Estalinegrado. Quando chegou para trabalhar na fábrica de tractores Outubro Vermelho e estudar à noite, ficou impressionado com o que viu. “A cidade estava em ruínas. Só a Rua da Paz (eixo central da cidade) estava restaurada. Havia brigadas de prisioneiros de guerra alemães a tirar bombas, pistolas e restos de corpos entre os escombros”, recorda.

Depois de acabar os onze anos do ensino secundário, Stepanov foi estudar engenharia mecânica. Continuava a trabalhar de dia e nessa condição viveu os anos terminais do estalinismo. “Foram tempos felizes. As pessoas viviam normalmente, não faltava nada. Quem trabalhasse e tivesse uma vida normal não tinha que se preocupar com nada”, diz. E a repressão, e o Gulag, e os Julgamentos de Moscovo? “As pessoas não viviam com essas preocupações. Não eram coisas sobre as quais falássemos”, justifica. Por isso, teve dificuldade em ouvir as denúncias de Khrutchov no XX Congresso do Partido Comunista, que de alguma forma o interpelaram sobre anos de estabilidade e de felicidade que vivera. Mas apenas ao de leve. A aversão de Stepanov ao revisionismo de Khrutchov é liminar.

"Crimes" de Gorbatchov e Ieltsin

Stepanov casou e teve filhos. Depois da indústria foi trabalhar para os serviços de irrigação do Estado. E foi assistindo com amargura aos caminhos trilhados pelo regime. “Um dia deitei-me cidadão de Estalinegrado e acordei cidadão de Volgogrado”, lamenta. A desestalinização começada em 1956 continuava nesse ano de 1961. “Hitler queria arrasar Estalinegrado e conseguiu. Mas só materialmente, porque espiritualmente a cidade resistiu e venceu-o. Seriam depois os russos a matar espiritualmente Estalinegrado”, diz em tom de lamento. Para ele, a cidade íntima, a que guarda, continua a ter o nome do líder dos seus primeiros anos de vida.

Foto
Gorbatchov e Ieltsin, em 1999 Gennady Galperin/REUTERS

Depois de se reformar, em 1987, a sua desilusão com a Rússia iria acentuar-se. A queda do regime soviético foi um desastre nacional, diz. “Gorbatchov e Ieltsin foram os responsáveis pelo colapso da URSS e por isso deviam ser condenados por traição à Rússia”, diz. Ieltsin morreu em 2007, mas para Stepanov o “crime” de Gorbatchov ainda não prescreveu. “Devia ser julgado e enviado para a Sibéria diz”.

Aos 90 anos, só a devoção a Vladimir Putin parece ser capaz de moderar a desilusão e a ira que o destino da Rússia pós-soviética lhe suscita. “Putin fez-nos regressar ao nosso glorioso passado e hoje somos de novo um grande país. O Mundo respeita-nos outra vez”, diz.

Apesar da sua idade avançada e de uma vida cheia de provações, Stepanov exibe uma pose enérgica, gesticula com frequência e ritmo, revela uma particular agudez no olhar e dispõe de uma memória prodigiosa. “Nunca bebi, nunca fumei e ainda hoje faço exercício físico”, diz.

Entrevistámo-lo numa cave da Igreja de São João Baptista, no centro de Volgogrado, com a ajuda de Eelena Vasilievskaya e do Padre Sergey Svenkov. Quando nos despedimos, deu-nos uma série de mapas da batalha de Estalinegrado. O momento exacto em que o mundo começou a olhar a URSS como uma superpotência.  

Sugerir correcção
Ler 2 comentários