É primeira-ministra e não tem filhos. E isso ainda é notícia

Não é a idade nem o sexo que fazem de Jacinda Ardern uma primeira-ministra diferente. É a solução política que encontrou para formar governo e a resposta que deu para repudiar o sexismo.

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Numa primeira leitura, tudo aos nossos olhos parece estranho na Nova Zelândia, olhos que estão — literalmente — no outro lado do mundo: os motoristas do Estado são multados por excesso de velocidade com a líder do Governo no carro, o namorado da primeira-ministra é apresentador de um programa de televisão sobre pesca chamado Fish of the Day e a residência oficial do chefe do executivo foi uma clínica dentária durante anos.

O pretexto para esta breve imersão é Jacinda Ardern, que acaba de tomar posse como primeira-ministra da Nova Zelândia. Tem 37 anos, é uma progressista de esquerda e junta um estilo, carisma, idade e ideias que fazem lembrar o canadiano Justin Trudeau.

Não é por ser mulher que a nova primeira-ministra foi notícia. A Nova Zelândia é um dos poucos países do mundo com três mulheres a chefiar o executivo e, mais raro ainda, duas delas consecutivas. A primeira foi a conservadora Jenny Shipley (1997-99), e a segunda a trabalhista Helen Clark (1999-2008), um dos 13 candidatos a secretário-geral da ONU que o português António Guterres derrotou no ano passado.

Também não é pela idade que Ardern faz história — apesar de impressionar e de ser ainda mais nova do que o Presidente francês, Emmanuel Macron. Em 1856, Edward Stafford tornou-se primeiro-ministro da Nova Zelândia aos 37 anos e 40 dias. Quando tomou posse na semana passada, Ardern tinha 37 anos e 92 dias. A BBC foi exacta no título: “Líder mais nova em 150 anos.” Em rigor, Ardern é a mulher mais jovem de sempre à frente da Nova Zelândia. E, já agora, do mundo.

Dentro de toda a peculiaridade neozelandesa, o que é interessante nesta história é outra coisa. Na verdade, são duas. A primeira é a solução política que Ardern encontrou para resolver o impasse saído das legislativas de Setembro. A segunda foi o modo como respondeu ao sexismo que a sua ascensão despertou.

Labour e nacionalistas: que aliança é esta?

Primeiro a política. Os dois partidos que fazem a rotação do poder desde 1935, o Labour (trabalhista) e o National (conservador), ficaram quase empatados. O Partido Nacional ficou com 56 lugares no Parlamento e o bloco Trabalhistas+Verdes ficou com 54. Durante os 26 dias das negociações, especulou-se muito sobre que papel assumiria desta vez Winston Peters, o líder do partido Nova Zelândia Primeiro, que no passado desbloqueou o impasse a favor dos conservadores.

Não é só a palavra “Primeiro” (First, no original) que faz pensar em Donald Trump e no lema “America First”. As ideias do partido também.

Populista numa versão neozelandesa — é filho de um maori da tribo Ngati Wai e de uma descendente de imigrantes escoceses do clã McInnes, e foi operário na metalurgia e na construção de túneis antes de estudar política e direito —, Winston Peters, 72 anos, defende de corpo e alma três ideias: reduzir a imigração (diz que é “importar actividade criminal”), aumentar as penas criminais e acabar com a “indústria da indignação” em torno do Tratado de Waitangi, de 1840, entre a coroa britânica e os chefes maori, que, essencialmente, deu a soberania do país a Londres. Não é por acaso que dizem que Winston Peters é o “Trump neozelandês”.

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Jacinda Ardern (Trabalhista) com Winston Peters, líder do partido Nova Zelândia Primeiro, de quem dizem ser "o Trump neozelandês". Na foto de topo deste artigo, Jacinda com uma das suas sobrinhas, no dia da tomada de posse

As coligações são a regra na Nova Zelândia desde 1990. Além disso, os eleitores já viram os mesmos partidos aliarem-se tanto à esquerda como à direita. É o caso do United Future (conservadores), dos Verdes e do Nova Zelândia Primeiro. O próprio Winston Peters foi vice-primeiro-ministro (1996-1998) num governo do Partido Nacional; a seguir, Jim Anderton (do Partido Progressista, de esquerda) teve o mesmo cargo numa coligação com o Labour (1999-2008), e a direita, que agora ganhou mas foi para a oposição na sequência do acordo Ardern/Peters, governou entre 2008 e 2017 em coligação com a Association of Consumers and Taxpayers, o United Future, o Partido Maori e os Verdes (que saíram em 2011).

Com 7,2% dos votos e nove lugares, voltou agora a caber a Winston Peters o papel de escolher o primeiro-ministro. Para surpresa de muitos, fez acordo com a esquerda. Escolheu o Labour ou escolheu Jacinda Ardern? Na Nova Zelândia, fala-se em “Jacindamania”, e o acordo revela, no mínimo, o carisma da nova primeira-ministra, uma mulher de esquerda sem qualquer ambiguidade. Quando anunciou a sua decisão, Peters disse que tinha de escolher entre “o statu quo modificado” e a mudança e que escolheu a segunda. O seu partido ficou com quatro pastas. Peters é de novo vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Jacinda Ardern acumula três pastas: Segurança Nacional e Serviços Secretos; Arte, Cultura e Património, e Crianças Vulneráveis, as mesmas que tinha como líder da oposição.

Mal tomou posse, Ardern começou a pôr em prática o lema de campanha: “Let’s do this.”. Ao lado do seu vice-populista de direita, prometeu mudanças profundas nos primeiros cem dias e um “miniorçamento” até ao Natal. O Governo vai começar pela Educação, aumentando de forma substancial o investimento do Estado: o primeiro ano universitário será gratuito para todos e as bolsas vão aumentar 50 dólares por semana. Como medida de compromisso, e respondendo a uma vontade do seu parceiro de coligação, anunciou também a intenção de suspender a venda de casas a estrangeiros.

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Jacinda com o namorado, Clarke Gayford, apresentador de um programa de televisão sobre pesca

Ainda o sexismo

O segundo tema é o sexismo — ou a pergunta da maternidade. Vai Jacinda Ardern ter filhos? A pergunta foi feita duas vezes de seguida, a primeira sete horas depois de ter sido eleita líder do Partido Trabalhista. Qualquer coisa como “muitas mulheres chegam ao fim dos 30 anos e têm de escolher entre terem filhos ou continuarem a sua carreira. Essa é uma escolha que sente que tem de fazer ou que já fez?”. A resposta:

— Não tenho problema em que me faça essa pergunta, porque tenho sido muito aberta em relação a esse dilema e sinto que muitas mulheres o enfrentam. A minha posição não é diferente da das mulheres que têm de ter três empregos ou que têm muitas responsabilidades.

Mas no dia seguinte, o tema regressou, noutra entrevista, e foi colocado de uma forma que a irritou. “Acho que é uma pergunta legítima, porque pode ser primeira-ministra, e um empregador numa empresa precisa de saber este tipo de coisas sobre as mulheres que vai contratar, porque as mulheres tiram licença de maternidade. E portanto a pergunta é: é aceitável que um primeiro-ministro tire licença de maternidade quando está em funções?” Outro jornalista que estava no painel interrompeu com um “oh oh oh...”, como quem diz, “calma”, e perguntou a Ardern: “Acha esta questão de ter ou não bebés uma pergunta legítima?”

— Para mim — respondeu Ardern — sim, porque me abri em relação a isso. Mas para as outras mulheres, é totalmente inaceitável, em 2017, dizer que as mulheres têm de responder a essa pergunta no local de trabalho. É uma decisão das mulheres quando querem ter filhos. Não deve predeterminar se são ou não contratadas.

Na política, como no resto, os clichés sexistas parecem inexoráveis. No livro Head and Shoulders: Successful New Zealand Women Talk to Virginia Myers, de 1986, Helen Clark conta que a campanha para as legislativas de 1981 foi muito difícil: “Por ser solteira, fui massacrada. Fui acusada de ser lésbica, de viver numa comunidade, de ter amigos trotskistas e homossexuais...” Pressionada pelo seu próprio partido, acabou por se casar com o sociólogo Peter Davis, com quem vivia há cinco anos, pouco antes de ser eleita para o Parlamento. Não têm filhos. Agnóstica (tal como Jacinda Ardern), Clark tinha reservas profundas sobre a ideia de se casar e, segundo escreveu Brian Edwards na biografia Helen — Portrait of a Prime Minister, de 2002, chorou durante toda a cerimónia.

Na Austrália, mesmo ao lado, o tema é familiar. Quando Julia Gillard se tornou primeira-ministra (em 2010), o editorial do Sydney Morning Herald dizia: “A sua imagem mediática não encaixa nas expectativas de alguns eleitores: uma mulher solteira, sem filhos, cuja vida é dedicada à sua carreira.” Claro que, depois do insulto de Bill Heffernan uns anos antes, nada a terá surpreendido. Heffernan, um senador conservador amigo do então primeiro-ministro, John Howard, ainda hoje defende com orgulho a ideia de que Julia Gillard “nunca compreenderá os eleitores porque não tem filhos nem família”. “Se se é um líder, tem de se compreender a comunidade”, disse em 2007. “Uma das coisas importantes a compreender numa comunidade é a família e a relação que existe entre a mãe, o pai e uma caixa de fraldas.” O mais extraordinário veio a seguir: por ser “deliberadamente estéril”, Gillard não tinha capacidade para liderar.

Jacinda Ardern cresceu em Morrinsville (sete mil habitantes) e em Murupara (1700 pessoas), rodeada pela floresta de Kaingaroa. Murupara significa “limpar a lama”. O pai era polícia e a mãe empregada na cantina de uma escola. Em 2017, e depois de duas mulheres a chefiar o Governo, não ter filhos ainda é notícia.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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