Um veleiro do século XIX levou o azeite dos Reigado do vale do Côa para Brighton

Empresa familiar de Figueira de Castelo Rodrigo vendeu parte da produção a uma cooperativa inglesa inserida numa aliança global pelo comércio marítimo amigo do ambiente

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O Nordlys à chegada a Newhaven, esta semana Martin Sinnock

Esta é a história de mil litros de azeite. Podiam ser mais, mas Emília e Justino Reigado não tinham já mais do que isso para vender aos ingleses da Sail Boat Project, que o tinham provado numa feira internacional e que, fazendo jus à forma sustentável como ele é produzido, levaram-no para Brighton num veleiro do século XIX. Esta é por isso também a história de uma viagem, e de empresas que acreditam que o transporte marítimo tem um papel a cumprir no combate às alterações climáticas.

Quando Emília Reigado, natural de Amarante, se instalou, há vinte anos, no Vale do Côa, em Quintã de Pêro Martins, freguesia do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, o marido já ali produzia azeite, explorando um olival de montanha, dominado por árvores de castas historicamente (im)plantadas na região, a Verdeal e a Cornicabra. Os Reigado produzem essencialmente azeite e azeitona de conserva, mas também alguns frutos secos, como a noz e a amêndoa, e figo e pêra desidratados, vendidos em feiras da região e noutros pontos do país. Mas a fama dos seus produtos já ultrapassou as fronteiras há alguns anos.

O casal vive nas margens da Reserva Natural da Faia Brava, a primeira área protegida de gestão privada do país, e, na verdade, partilha com estes vizinhos um apego pela natureza que os rodeia e pelos modos de produção ancestrais, apoiados em tecnologia, claro, mas respeitando usos e tradições locais. Emília, com quem a Fugas conversou ao telefone, explica, por exemplo, que se recusa a plantar variedades de oliveira mais produtivas porque não quer, de todo, fazer um azeite igual ao que o mercado já oferece a rodos e porque já percebeu, no contacto com os clientes, que há mercado para a sua produção.

A opção tem custos, mas também vantagens. Emília, que tinha “zero” experiência nesta actividade quando ali chegou, fala com orgulho de um processo de aprendizagem exigente, que a levou a vencer desconfianças e a organizar, com outros agricultores do concelho, uma associação de produtores e a iniciar, mais recentemente, um processo de certificação das respectivas produções no modo de produção biológico. O azeite Justino Coelho Reigado está quase a receber o selo, mas nem foi preciso essa garantia para convencer os ingleses da cooperativa Sail Boat Project (SBP) que, explica Crispin Field, ao telefone, de Brighton, perceberam que o produto tinha excelente qualidade e um preço competitivo, quando comparado com a oferta existente nos supermercados ingleses.

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A família Reigado tem uma empresa agrícola em Figueira de Castelo Rodrigo DR

Cruzaram-se numa edição do SISAB - Salão Internacional do Sector da Alimentação e Bebidas, e este ano o SBP, que tem um serviço de transporte de mercadorias (o Sail Cargo South East), encomendou-lhes mil litros de azeite. Seria o dobro, se houvesse, mas os Reigado, que nas suas propriedades raramente são mais do que as quatro mãos de Emília e Justino, produzem cerca de três mil litros e o restante estava já vendido ou comprometido com outros clientes. As coisas hão-de ser diferentes quando o filho pegar no negócio e o potenciar, acredita a produtora, que, ao contrário de uma boa parte dos agricultores do interior, tem garantida, através dele, a continuação da actividade.

Comércio justo e sustentável

Os ingleses não compraram apenas o produto, mas toda uma cultura, entendida, neste caso, como modo de vida. Visitaram a propriedade, viram como os Reigado trabalham e, explica Crispin Field, sentiram-se encantados com o seu papel na preservação de uma agricultura sustentável numa região tão difícil, no Interior de Portugal. “Somos uma cooperativa, e acreditamos que devemos apoiar outras cooperativas e produtores que se identifiquem com o nosso compromisso”, acrescenta o responsável pelo projecto Sail Boat, que fomenta a navegação à vela e, para além de formação certificada nesta actividade, promove, por exemplo, a integração de pessoas com deficiência através de experiências náuticas.

O preço contratado, que vai permitir aos Reigado comprar mais uma máquina para a sua quinta, permitiu-lhes acrescentar a margem de lucro e os custos com o transporte e, ainda assim, vender o azeite no mercado inglês a um preço nada proibitivo, garante Crispin Field, notando que as 50 libras que pede por um garrafão de cinco litros não assustam a clientela, habituada até a encontrar alguns azeites mais caros, e de menor qualidade, nas lojas. Uma boa parte do produto já foi, por isso, vendido, assegura. Decorrente desta primeira experiência, para além de mais carregamentos de azeite, a Sail Cargo SE admite vir a comprar outro tipo de bens em Portugal.

Elemento distintivo nesta relação comercial foi a forma escolhida para fazer chegar o azeite ao destino. A cooperativa de Brighton está integrada na Sail Cargo Alliance, criada em 2015 por empresas que se dedicam ao transporte marítimo de mercadorias de forma sustentável. E contratou, por isso, o serviço da Fairtransport, sociedade co-fundadora desta aliança criada por um trio de holandeses em 2007 e que, para além de trabalhar com navios de outras entidades associadas, opera com um bergantim, o Tres Hombres, em rotas transatlânticas, e com um navio de dois mastros, um caíque, semelhante aos que dantes se viam na costa algarvia, em rotas europeias.

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O Nordlys, em Newhaven, Brighton, esta semana Martin Sinnock

Atrair as atenções com navios históricos

Foi este, o Nordlys, que em passagem recente pelo Porto levou para Brighton a encomenda feita aos Reigado, numa viagem limpa de emissões. Pelos oceanos do planeta, dezenas de milhares de navios transportam 90% das mercadorias em circulação, e são responsáveis por mais de 4% das emissões globais de CO2, atirando para a atmosfera mil milhões de toneladas de dióxido de carbono, bem mais do que emitiu em 2015 um país como a Alemanha, segundo o Eurostat. E esta aliança, em cujas empresas estão a desenvolver projectos para navios modernos, com formas de propulsão amigas do ambiente, acredita que é possível fazer melhor.

A Sail Cargo Alliance garante que, para além de ecológica, a navegação com recurso a veleiros, neste caso históricos, atrairá a atenção mediática sobre os produtos assim transportados, o que é bom para o negócio, nota. E a verdade é que a chegada do caíque Nordlys ao porto de NewHaven não passou despercebida na imprensa local e entre os fotógrafos amadores, como Martin Sinnock, que se deliciou a fixar a entrada daquele veleiro na barra. A embarcação construída em 1873 é uma das mais antigas em operação e as suas velas latinas, brancas e vermelhas sangue de boi, dão nas vistas.

A bordo, a tripulação inclui mulheres, deitando por terra antigas superstições que as viam como portadoras de má sorte aos navios. Mas há também história em movimento e preservação de saberes ancestrais, desde logo na construção naval em madeira, mas também nos gestos e tarefas a bordo. E Crispin Field mostra-se satisfeito por recriar, através do recurso a este serviço, rotas de navegação ancestrais, que unem Portugal e Inglaterra há séculos e que tiveram no Porto - e no seu vinho - um dos pontos de passagem principais no nosso país.

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O Nordlys à chegada a Newhaven, esta semana Martin Sinnock
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