Por uma vigilância dos usos e abusos da história

A recuperação da história dos impérios coloniais europeus, durante muitos anos glorificada e depois rapidamente esquecida, é tão mais necessária porquanto ela nos ajuda a perceber de onde viemos, como aqui chegámos e que opções temos para o futuro.

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Quando, em 1996, a polícia parisiense entrou na Igreja de Saint-Bernard para expulsar imigrantes de origem africana que reivindicavam o acesso à nacionalidade, um aceso debate, com longos antecedentes, ressurgiu nos meios de comunicação social franceses sobre os chamados “sans-papiers”. Não tardou até que uns lembrassem como alguns dos que se viam na situação de serem expulsos eram descendentes de antigos militares dos tirailleurs sénégalais, um corpo especificamente composto por elementos da antiga África Ocidental francesa que combateu nas duas guerras mundiais, em solo europeu, para defender a integridade territorial da França. Os descendentes destes antigos militares (e outros, que não sendo descendentes compreendiam a força deste apelo) colocavam em xeque toda a retórica assimilacionista francesa de forma poderosa. Aos filhos e netos daqueles com quem a nação contraíra uma dívida de sangue, quando defenderam não só o império mas a própria pátria francesa, era-lhes agora negada a cidadania plena.   

Este é só um exemplo, entre muitos, de como a retirada dos impérios europeus das suas antigas colónias não se traduziu num fim abrupto do elemento colonial nas antigas metrópoles. A recuperação da história dos impérios coloniais europeus, durante muitos anos glorificada e depois rapidamente esquecida, é tão mais necessária porquanto ela nos ajuda a perceber de onde viemos, como aqui chegámos e que opções se nos apresentam para o futuro. Isto, claro, se queremos construir um mundo onde a desigualdade racial, étnica e cultural detenha um lugar menos central. O estudo da história impõe-se enquanto condição para avaliar criticamente realidades idas mas também os seus legados bem visíveis, de assuntos rotineiros, como a gastronomia ou a língua, àqueles cujo sentido de urgência política e social é flagrante, como, por exemplo, os relacionados com as políticas de cidadania ou das migrações.

Enjeux Politiques de l’Histoire Colonial (2009), da autoria da historiadora Catherine Coquery-Vidrovitch, responde a esta necessidade de estudar as realidades sociais, económicas, culturais e políticas do colonialismo europeu e, ao mesmo tempo, de indagar como esse passado condiciona os modos de olhar para o presente e de imaginar o porvir. A história, a memória e a política por relação com a questão colonial e imperial constituem os temas tratados por esta obra que, de forma sagaz e informada, nos interroga a todos a partir de temas tão diversos como a edificação jurídica dos impérios ou as reverberações das memórias coloniais no presente.

Se de uma forma mais ou menos consciente todos os autores dialogam com as suas circunstâncias, Enjeux Politiques fá-lo de forma deliberada. Nasceu em resposta directa à recorrência de usos e abusos políticos da história, procurando intervir nos debates associados às chamadas “guerras da memória” que atravessaram, e continuam a permear, a academia e a sociedade francesas. A defesa de um olhar mais atento sobre as várias formas possíveis de instrumentalização da história com fins políticos imediatos não pode ser confundida com qualquer tentativa de silenciamento ou branqueamento. Visa, antes, a promoção de debates fundamentados, que evitem o aparente fulgor da frase feita ou meros argumentos de autoridade.

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Imigrantes do norte de África em La Chapelle, Paris, 1955 Keystone-France/Gamma-Rapho/ Getty Images

As fracturas coloniais na república

As ressonâncias públicas da relação entre memória, história, justiça e política assumem, porventura, uma dimensão ímpar no “hexágono”. O conhecido caso Dreyfus ou o colaboracionismo durante Vichy são dois exemplos passados de cismas nos debates públicos franceses. Outros se seguiram, como o comprovam a lei sobre o genocídio arménio ou a que criminaliza o negacionismo de crimes contra a humanidade. Neste contexto, o despontar da questão colonial não surpreende. Pensemos no caso da Lei Taubira, de 2001, que pretendia tipificar a escravatura e o tráfico de escravos como crimes contra a humanidade ou na decisão, de 2005, de o Estado promover visões que valorizassem os aspectos positivos da colonização francesa, inclusive nos manuais escolares. Neste último caso, a influência de redes de descendentes da Organização Secreta Armada — organização paramilitar que resistiu à descolonização argelina através do recurso a várias formas de terrorismo — na decisão política foi manifesta, contribuindo para a indignação generalizada. O assunto não morreu, como se pôde ver nas últimas eleições presidenciais, particularmente através das intervenções de François Fillon e Emmanuel Macron acerca do passado imperial. A revisitação da história colonial francesa é vista como um instrumento político útil. Todavia, um aspecto tem-se mantido constante: a dificuldade em debater de modo informado, recusando usos acríticos da história, e conseguindo contrariar tanto aqueles que determinam que a história é um campo reservado às autoridades académicas como os que procuram subordinar a prática de estudar o passado a uma causa política maior no presente.

Enjeux Politiques responde a muitos dos problemas suscitados pela produção historiográfica sobre colonialismo e a sua utilização no espaço público. Fá-lo recusando dar respostas simples a perguntas necessariamente complexas, como aquelas que procuram compreender as relações entre memória e história, entre história e política, entre “objectividade” e “relativismo”. Um exercício que está consciente das limitações inerentes ao ofício do historiador, reconhecendo que este não existe isolado das múltiplas identidades e circunstâncias que o condicionam, mas que nem por isso admite o abandono da auto-exigência do rigor e do método. Moderação, aqui, não deve ser entendida como tibieza ou putativa equidistância. Antes como reconhecimento da precariedade das propostas de compreensão histórica. Ou dos riscos inerentes ao abandono dos princípios fundamentais da produção regrada de conhecimento. A memória e a política nunca estarão completamente fora da história. Mas estas não são, evidentemente, uma e a mesma coisa. Qualquer cidadão deve estar sempre alerta face às possíveis contaminações políticas e memorialísticas do saber histórico. O historiador tem aqui uma responsabilidade acrescida, apesar de não possuir jamais o monopólio dessa vigilância, nem por decreto, nem por inerência de funções.

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O livro da historiadora Catherine Coquery-Vidrovitch (2009): a história, a memória e a política por relação com a questão colonial e imperial

Os cuidados que a autora recomenda, e que a si própria aplica, não são de todo incompatíveis com uma apreciação global sobre o que foi o moderno colonialismo europeu. Este constituiu-se historicamente em torno de três eixos: a desigualdade sistémica, o racismo e a violência institucionalizados. Contra as visões que pretendem suavizar o colonialismo europeu, feitas de recorrentes operações revisionistas ou presentistas, esta tripla faceta é inescapável. Independentemente das filiações políticas ou ideológicas dos historiadores, estes factos são dificilmente questionáveis empiricamente. No caso francês, manifestaram-se, desde logo, na criação de regimes jurídicos duais, experimentados pela primeira vez na Argélia no século XIX, cristalizando a diferença jurídica e política entre cidadãos e “indígenas”, fazendo-lhes corresponder cardápios diferentes de direitos e deveres. Estes regimes estenderam-se, com diferenças, a parte do império, com impacto directo nas políticas laborais, fiscais e fundiárias. Foram visíveis ainda nos duplos colégios eleitorais que faziam variar o peso eleitoral de cada voto em função da identificação cultural, religiosa ou racial. Ou ainda nas formas organizadas de violência perpetradas pelos Estados coloniais, das mais famosas, como as da Argélia, às menos conhecidas, como a repressão da revolta malgaxe de 1947/48. São vários os paralelos que podem ser estabelecidos a este respeito noutros contextos coloniais, incluindo o português. Sem excepções.

Contudo, o reconhecimento destes paralelos não pode servir, como sucede frequentemente, para justificar historicamente este ou aquele império em particular. A insistência na natureza intrinsecamente discriminatória de todos os colonialismos torna-se urgente, quando diversas iniciativas procuram normalizar a sua história e legados — por exemplo, relativizando a violência colonial, cotejando-a com outros abusos, de forma a mitigar os seus impactos, ou usando a escassez de informação para lançar suspeitas sobre a sua magnitude e recorrência. Outro exemplo decorre de acusações de anacronismo na interpretação histórica, ou seja, de que determinadas práticas eram, à época, aceitáveis, supostamente sem ser objecto de questionamento ou repúdio. A maioria destas acusações ignora deliberadamente as recorrentes manifestações de denúncia que então se fizeram sentir. A crítica do registo histórico dos impérios coloniais não é um exclusivo dos parâmetros morais contemporâneos. Também a ausência ou a escassez de fontes convencionais, isto é, fontes dos arquivos estatais, é usada por alguns como pretensa prova da ausência de contestação das iniquidades coloniais à época. A historiografia contemporânea tem, de modo variado, procurado iluminar as múltiplas formas de denúncia e resistência que as populações subjugadas empreenderam. E os arquivos oficiais são generosos na revelação do desconforto administrativo, quando não reprovação explícita, face às práticas generalizadas da época.

A hierarquização racial, decorrente de critérios biológicos ou socioculturais, constituiu a pedra angular do moderno colonialismo europeu e o ofuscamento deste aspecto manifesta-se de múltiplas formas na história, na memória e na política actuais. Na história, quando se persiste nas narrativas dos grandes homens e dos grandes feitos, imaginando um ocidente fechado nas suas fronteiras nacionais ou “civilizacionais”, o que nunca sucedeu. Este foi sempre “construído” pelas múltiplas interacções que manteve com outras geografias e povos. Revela-se também nas memórias das sociedades ocidentais, onde a “cacofonia” dos testemunhos pessoais dos antigos colonos deixa pouco espaço aos que foram colonizados. E revela-se ainda na política, em que a visibilidade e a capacidade de intervenção públicas dos “repatriados” é esmagadoramente desproporcional face à dos antigos “indígenas”.

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Wambugu Wa Nyingi, Jane Muthoni, Paulo Nzili e Ndiku Mutua (da esq. para a dir.) levaram o Estado britânico a tribunal para reposição de indemnizações da violência discricionária no Quénia Peter Macdiarmid/Getty Images

Turbilhão memorial na Europa

Estas “batalhas” têm vindo a ganhar maior relevo noutras antigas metrópoles europeias. É o caso dos Países Baixos, onde várias instituições requereram fundos governamentais para reavaliar os arquivos das companhias das Índias ou onde, em 2008, o Tribunal de Primeira Instância de Haia condenou o Estado holandês a pagar indemnizações às vítimas do massacre de Rawagedeh, cometido durante a eufemisticamente denominada “operação policial” na Indonésia. Na Alemanha, as iniciativas políticas que visam reparar ou, pelo menos, reconhecer simbolicamente o genocídio dos Nama e Herero, cometido na Namíbia no início do século XX, têm agitado o debate político. Vêm também reavivando o debate em torno dos “contributos” coloniais para as políticas de extermínio nazi, ligação desde logo antecipada por autores como Hannah Arendt e Aimé Césaire. Na Bélgica, tanto o domínio desumano de Leopoldo II, como o papel do Estado na violenta descolonização do antigo Congo têm merecido renovada atenção. Também os mitos de uma descolonização britânica ordeira vêm sendo reexaminados, em particular nos cenários de counter-insurgency do Quénia e da Malásia. Historiadores como David Anderson e Caroline Elkins denunciaram a violência do que a última chamou o “Gulag britânico”. Ambos se envolveram nas disputas judiciais que levaram ao pagamento de reparações a vítimas, ainda vivas, da violência discricionária que, mais frequentemente do que se julga ou se quer reconhecer, marcou os vários processos de descolonização.

Estes exemplos demonstram sugestivamente, ao invés de determinarem uma separação rígida entre memória e história, como as memórias do colonialismo são necessariamente heterogéneas. Os debates públicos sobre o colonialismo europeu podem abrir espaço (e têm-no feito) para que memórias diferentes, em particular as dos antigos colonizados, entrem por direito próprio na arena pública. Essa inclusão recalibra ainda as várias identidades e memórias nacionais que, de forma deliberada ou inadvertida, reduziram a história imperial à história da antiga metrópole, deixando de fora milhões de seres humanos e seus descendentes. Mais, e ao contrário do que se apregoa, o debate público sobre as histórias e memórias coloniais não parece ter enfraquecido a investigação académica sobre o colonialismo europeu. Antes tem obrigado a um olhar cada vez mais atento e imaginativo por parte da academia. Nem a transferência para a esfera jurídica de debates intelectuais, nem o confinamento destes à esfera académica em nome de um qualquer orgulho civilizacional pretensamente ameaçado são as únicas opções em contenda — por exemplo, entre a defesa da remoção de estátuas e a absoluta intransigência face a qualquer mudança, apresentam-se outras opções que podem conciliar a preservação de património e a sua devida contextualização histórica. Ou, no que toca a indemnizações, estaremos seguramente a falar de processos muito diferentes, caso se trate de um expediente de um governante para atenuar as suas responsabilidades nos problemas presentes da sua comunidade, ou de vítimas individuais que pretendem ser compensadas por violações várias dos direitos humanos cometidas pelo Estado. 

A radicalização de posições irreconciliáveis pode servir muito bem para cimentar sociabilidades de grupo, alimentando o protagonismo vaidoso deste e daquele. Mas não contribui para um conhecimento fundamentado sobre as sociedades onde vivemos, o seu passado e respectivos legados. Como recentemente afirmou Timothy Garton Ash no Guardian, a propósito do movimento que, na África do Sul e no Reino Unido, pretende remover uma série de estátuas de figuras imperiais de estabelecimentos de ensino, o debate associado sobre as políticas da memória é “perfeitamente legítimo”, tal como o foi aquele que teve lugar no Leste europeu após 1989.

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O movimento "Rhodes Must Fall" na África do Sul Charlie Shoemaker/Getty Images

Após o silêncio ou o mero murmúrio, a cacofonia em Portugal

Por cá, estes debates têm sido dominados pela memória e pela nostalgia, maioritariamente branca. E por uma virulência extrema, ironicamente oriunda não de “activistas”, mas daqueles que se insurgem contra os que apresentam uma visão menos delico-doce do império colonial português, seja através de investigação, artigos de jornais ou até por via da ficção literária.

No entanto, o foco nas políticas da memória e da identidade (mesmo que de sentido contrário), também visível no interior da academia, não pode sobrepor-se à necessidade de indagação rigorosa do passado colonial. Apesar do crescimento considerável que o estudo da história colonial portuguesa verificou nos últimos anos — por exemplo, com novas investigações sobre os programas de desenvolvimento e de produção científica, sobre as dinâmicas da administração ou sobre as ricas formas de cultura popular em contexto colonial —, há ainda demasiadas lacunas. Informação elementar ainda escasseia, sobre tópicos como a violência organizada ou políticas da (sub)cidadania. Ou ainda sobre as experiências e iniciativas das populações subjugadas. Estes ângulos mortos não se limitam estritamente ao passado, decerto. É fundamental ir mais longe na indagação empiricamente sustentada de como os seus legados contribuíram para moldar as diferentes realidades pós-imperiais. Tal pode ser feito a partir de temas como a escassa inclusão política e cívica, a marginalização económica ou o desigual acesso à educação. Contudo, muitos dos debates contemporâneos sobre estes temas no espaço público não mostram acompanhar os desenvolvimentos no campo académico. Amiúde, trata-se por novidade o que não é, ignora-se o que está estabelecido, toma-se por evidente o que está longe de estar resolvido. O debate decorre maioritariamente da memória e da política, não da história. Pouco contribui para a obrigação cívica que todos temos: discutir de modo rigoroso e crítico, sem preconceitos e sem cedências, os passados do presente. E os caminhos do futuro que queremos.

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Elementos da Frente de Libertação Nacional feitos prisioneiros pela Legião Estrangeira na guerra da Argélia Photo12/UIG /Getty Images

Os autores da série História(s) do Presente são investigadores do Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra.

Através da revisitação crítica de doze livros, ao longo de doze meses, a série História(s) do Presente recupera um conjunto de processos históricos que modelaram inequivocamente o nosso presente. Da longa persistência de modelos de organização concentracionária em “campos” durante o século XX, à recorrente ameaça, proveniente de vários sectores, sobre os fundamentos racionais do conhecimento, passando pelas preocupações relativas ao crescimento demográfico ou à sustentabilidade do planeta, a série oferecerá ao leitor uma visão mais poliédrica dos passados que construíram o mundo como o conhecemos hoje. Para acompanhar sempre no primeiro domingo de cada mês, no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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