A tropa do Solnado

Todos os desenvolvimentos do caso do roubo das armas no quartel de Tancos fizeram-me lembrar o disco do soldado/Solnado

“Vocês não podiam atacar depois de almoço? Pois. Ou então vinham mais pela fresquinha. Sim. Aproveitam e almoçam cá com a gente. Tá bem. Vêm muitos? Ena, ca brutos! Não, é que a gente não sabe se tem cá balas para todos.”
Esta passagem pertence a Raul Solnado e faz parte de um disco intitulado É do Inimigo?, que fez história nos anos 60 do século passado e pode ser ouvido ainda no YouTube. Recebi-o de prenda quando fiz 6 ou 7 anos. Ouvi-o à exaustão no pick-up da sala. Ainda hoje me lembro de algumas passagens, como aquela em que o soldado/Solnado dizia ao suposto interlocutor do outro lado do telefone: “Tá lá, é do inimigo? Vocês podiam parar aí a guerra um bocadinho que o nosso capitão está com dores de cabeça?”
Não sei se há algum capitão ou oficial do Exército português com dores de cabeça neste momento, mas todos os desenvolvimentos do caso do roubo das armas no quartel de Tancos me fizeram lembrar o disco do soldado/Solnado. É que o absurdo do que se tem passado ultrapassa o imaginável e transformou-se numa nova obra-prima da comédia nacional.
Primeiro veio a notícia do roubo em Julho, quando o país vivia ainda a tragédia de Pedrógão Grande. Do quartel de Tancos tinham sido roubados caixotes de armas e munições. Depois ficou a saber-se que a segurança electrónica e a gravação dos vídeos de vigilância estavam avariados há meses e que as rondas dos soldados do quartel não tinham sido feitas como deviam — provavelmente estiveram nas camaratas a ouvir no YouTube o soldado/Solnado a telefonar para o inimigo.
Perante o vazio do poder do Estado face à gravidade da falha de segurança e defesa da soberania, com o primeiro-ministro de férias, Marcelo Rebelo de Sousa assumiu o dever a que o Presidente da República está obrigado não só como primeiro órgão de soberania, mas também como comandante supremo das Forças Armadas. Apresentou-se no quartel de Tancos para mostrar que o Estado existia e arrastou consigo o ministro da Defesa, que até então passara entre os pingos da chuva deste caso sem se molhar.
Quando se começou a perceber a gravidade desta situação, ouviu-se falar até dos riscos de potenciais acções terroristas em território nacional. Um receio contrabalançado, estava o primeiro-ministro de novo em Lisboa, com declarações de desvalorização máxima do roubo feitas por responsáveis governamentais e das Forças Armadas. Afinal, o que tinha sido roubado não era importante, tratava-se de material de guerra fora de prazo, era refugo obsoleto. O cúmulo da relativização irresponsável do caso aconteceu quando o ministro da Defesa, numa entrevista, resolveu colocar a hipótese de nem sequer ter havido roubo. Era mais um momento do soldado/Solnado. E, pelo sim, pelo não, fechou-se a guarda de armamento em Tancos.
Para espanto geral, esta semana, as Forças Armadas revelaram que as armas roubadas foram encontradas na Chamusca e tinham sido descobertas por denúncia de um telefonema — terá sido um descendente do soldado/Solnado que o fez? A maior surpresa é que as armas e munições encontradas trazem com elas um brinde. Voltando aos tempos “pré-históricos” da minha infância, lembro-me de a minha mãe contar: “Dantes, nas praças de Lisboa, quem comprava uma dúzia de alfaces trazia 13.” Uma história que nunca percebi se só era ironia, pois nunca confirmei a regra, mas que serve perfeitamente no rocambolesco caso de Tancos. É que o material de guerra encontrado tinha mais uma caixa do que as roubadas ou desaparecidas.
Pus-me a imaginar o telefonema de denúncia do local onde estava o material roubado e como seria se tivesse sido feito por um descendente do soldado/Solnado. Talvez tivesse sido assim: “Tá lá, é do inimigo? É para dizer que fomos aí roubar umas armas e munições, porque tínhamos falta, mas que agora as pusemos na Chamusca e já as podem ir buscar. Olha, mais uma coisa: como paga de juros pela utilização do vosso material de guerra, devolvemos um caixote a mais. Obrigadinho!”

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