Viajar por um mundo em conflito para alimentar a alma dos outros

Viveu 13 anos em Guimarães, 13 no Porto e outros 13 em Berlim. É da Alemanha que Paulina Almeida parte para o mundo para levar as Artes de Rua a zonas de conflito.

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Paulo Pimenta

Há um carro com matrícula palestiniana que é mandado parar por militares da IDF (Forças de Defesa de Israel) num checkpoint entre a Cisjordânia e Israel. Lá dentro está a curadora, instrutora e performer portuguesa Paulina Almeida com um grupo de jovens com idades entre os 17 e 18 anos, nascidos naquele território da Palestina. É 25 de Dezembro de 2010, tarde de Natal, e o plano é oferecer àquele grupo com quem trabalhou durante os meses que lá passou um presente: levá-los até à praia para poderem ver o mar.

O mar está “do outro lado”, em Israel. Os militares pedem os passaportes. Paulina Almeida, com passaporte europeu, tinha a via aberta para passar. O mesmo não acontece com os outros passageiros. “Qual é a garantia que têm de que não posso estar eu mais próxima de ser uma terrorista e eles não?”, pergunta aos responsáveis por controlar o checkpoint. A resposta foi um acenar para o “outro lado”, incentivado pelo próprio grupo que não passava por essa situação pela primeira vez.

Não conformada, tenta outra via e consegue furar até Israel. Chegam à praia e saltam para a areia, onde não conseguem estar muito tempo. Há uns soldados que se aproximam e que pedem para que saiam dali. O grupo de jovens não está confortável com a situação e percebe que poderá estar em maus lençóis. Paulina Almeida pede aos rapazes para pegarem nuns sacos plásticos que tinha guardado no carro e monta um personagem e uma manobra de diversão. Com o plástico todo nas mãos, pede explicações à IDF sobre o estado de poluição da praia. “Somos do Green Peace, acham que uma praia pode estar assim tão suja?”, interrogou. Os dotes de performer e actriz serviram para distrair e para poderem voltar em segurança à casa temporária da artista, também activista, que desde 1997 usa o espaço público como palco.

A Cisjordânia é apenas uma dessas casas temporárias que habitou e este é apenas um dos muitos episódios que a marcaram das vezes em que esteve em zonas do globo em conflito. “Não foi o mais trágico”, mas conta-o para ilustrar os choques civilizacionais que existem com base em eventos que tiveram lugar gerações antes das que estão agora a sofrer as consequências. Um dos episódios mais trágicos aconteceu quando o líder do Freedom Theater, Juliano Mer-Khamis, com quem estava a trabalhar na Palestina, foi assassinado. “Dias antes de acontecer, tinha-me dito que pressentia que um dia isso podia acontecer”, recorda.

Paulina Almeida nasceu em Guimarães no Verão de 1978. Viveu 13 anos na cidade berço, 13 no Porto e outros 13 em Berlim. É na transição para a Alemanha que dá início a uma série de viagens por vários países de diferentes continentes. Na cidade onde nasceu, ainda aos seis anos, desperta para o ballet e para a dança. Já no Porto, inscreve-se no curso de joalheria da Escola Secundária Soares dos Reis, onde foi conhecendo outros alunos ligados a diferentes áreas artísticas. Entre 1996 e 1999, logo após concluir o diploma, frequenta o TUP - Teatro Universitário do Porto e a ESMAE – Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. Nos três anos seguintes, até 2001, especializa-se em Teatro de Rua na ACE – Academia do Espectáculo do Porto. Nessa altura já existia a Companhia Kabong Teatro de Rua, que fundou em 1998.

Na Porto 2001 Capital Europeia da Cultura integra a companhia oficial de Artes de Rua, ano em que também trabalha com as companhias La Fura Dels Baus (Espanha), Compagnie Kumulus (França) Natural Theater Company (Reino Unido), entre outros.

Um ano depois, estava a leccionar a cadeira de teatro na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, quando é convidada a integrar a companhia alemã Grotest Maru. É aí que se muda para Berlim. Na Alemanha, na ressaca dos atentados às Torres Gémeas e do início do conflito no Afeganistão, faz um contacto com a RAWA – Associação de Mulheres do Afeganistão e parte à aventura para o Médio Oriente, para leccionar Teatro e Dança no Afeganistão e no Paquistão, onde encenou vários espectáculos.

“Tinha 22 anos. Não fazia ideia da realidade que ia encontrar”, recorda. Lá, encontrou um mundo muito diferente do que conhecia. Ainda no Porto tinha um projecto direccionado para mulheres. O trabalho que desenvolveu com aquele grupo fê-la perceber que há lutas muito diferentes intrinsecamente ligadas à geografia. “Não é fácil explicar a alguém que não conhece outra realidade que podem escolher o homem com quem querem casar”, afirma. O contributo que tinha para dar era apresentar-lhes “possibilidades e perspectivas diferentes” através das artes do espectáculo. Quando lá esteve numa base regular tinha que mudar de casa para preservar o anonimato da RAWA. Conta que no dia seguinte após ter dado uma entrevista a um jornal paquistanês, o sítio onde vivia na altura, um hospital, foi atacado a tiro. “Não me parece que tenha sido coincidência”, diz.

Quando voltou a Berlim não era a mesma pessoa. “Numa praça de Berlim havia uma manifestação contra a guerra. Não quero desvalorizar o acontecimento, mas senti que queria estar no centro de acção dos conflitos”, afirma.

A partir daí esteve em várias zonas do Magreb, no Senegal, na China, nos Estados Unidos, Canadá, México e em muitos outros países. Leva as artes de rua a vários zonas de conflito que “nem sempre passam por cenários de guerra”. Os resultados práticos das intervenções artísticas que leva a cabo, para a performer, não são fáceis de descrever. Recorda as palavras de um líder de uma tribo afegã que um dia lhe disse: “Paulina, tu estás a alimentar a alma”. “Talvez seja isso que este tipo de intervenções faz”, afirma.

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