Contra a doença do politicamente correcto

O moralismo censório é autoritário e um retrocesso civilizacional. Tivemos as brincadeiras com as crianças (quando éramos todos pedófilos), a seguir os animais (quando devíamos salvar o cão antes do bebé) e agora temos as “microagressões” sexuais.

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Este Verão, engasguei-me a rir com o alerta da Unidade para a Igualdade e a Diversidade da Universidade de Oxford, que começou por dizer ao staff que não olhar os alunos olhos nos olhos podia ser racismo e, a seguir, anulou o aviso por se ter esquecido de que as pessoas com autismo não conseguem olhar olhos nos olhos e que seriam, portanto, discriminadas.

Caminhamos para uma sociedade que aceita e promove a censura e que, entretida a inventariar “microagressões”, mistura no mesmo saco assédio sexual e avanços indesejados; respeito multicultural e História; apropriação cultural e liberdade de escolha. Levado ao extremo, infantilizados, mecânicos e em permanente cuidado para não perturbar, nem dizer ou fazer alguma coisa incómoda, um dia nenhum adolescente dará um primeiro beijo sem antes ter na mão um papel assinado a garantir que o gesto é bem-vindo. Exagero? Sim, mas não é exagero o que se passa nas universidades americanas e inglesas e, em menor escala, nas portuguesas? Na School of Oriental and African Studies, de Londres, alguns estudantes pediram menos “filósofos brancos” (o que seria se a Universidade Católica não ensinasse David Hume por ser ateu?); em Cambridge houve críticas à comida “culturalmente insensível” do refeitório; o Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência do King’s College pensa retirar os retratos dos seus fundadores; a City University, famosa pela escola de jornalismo, proibiu jornais tablóides; e no University College, a associação Nietzsche Society foi proibida por receio de estimular o pensamento fascista. Uma coisa é pedir que os currículos se actualizem e incluam mulheres, negros e asiáticos. Outra é deitar fora os clássicos porque representam um mundo desigual. Isso não é igualdade, é fechar o debate.

Em nome do politicamente correcto, os moralistas do século XXI dizem-nos o que devemos pensar, que autores devemos ler, o que podemos e o que não podemos dizer e, até, o que podemos vestir. Dizemos às crianças “não se aponta que é feio”, mas nós, os adultos, não fazemos outra coisa. Até o cabelo é tabu. Em 2001, quando fui ao Japão, notei como há cabeleireiros abertos até altas horas da noite. Se os japoneses adoram pintar o cabelo de louro e fazer caracóis! Mas hoje um americano de origem asiática não pode usar rastas sem ser acusado de “apropriação cultural”. Foi o que o antigo jogador de basquetebol Kenyon Martin, afro-americano, disse a Jeremy Lin, a estrela dos Brooklyn Nets. O episódio acabou por ser arquivado porque alguém perguntou se era “preciso lembrar que o apelido dele é Lin”. Ou seja, como pertence a uma minoria, pode usar o cabelo de outra minoria... E a colecção de Verão da Bimba & Lola, cujo padrão eram caras de mulheres masai? Uma homenagem ou uma objectificação da tribo queniana? Ou a intenção foi, simplesmente, desenhar um padrão bonito, que poderia ter caras de bebés louros, austríacos com chapéu tirolês ou cozinheiros de bigode comprido?

O moralismo censório é autoritário e um retrocesso civilizacional. Tivemos os carinhos às crianças (éramos todos pedófilos), a seguir os animais (devíamos salvar o cão antes do bebé) e agora temos as “microagressões” sexuais. Gosto de ler a Nation americana e a Spectator inglesa (com a qual dei a gargalhada deste Verão). Li todo o W.G. Sebald (que fica bem) e quase todo o Haruki Murakami (que fica mal). Não podemos ser de esquerda e gostar de Niall Ferguson, que tem grandes defeitos (como não gostar de Barack Obama), mas livros provocadores que nos fazem pensar? Não podemos ser de direita e gostar de Tony Judt? Não podemos ser feministas e achar ridículo que se denunciem avanços sexuais indesejados que ficaram para a história como tristes constrangimentos?

Não falo do desbragado Harvey Weinstein, que foi — e bem — despido na praça pública. Falo do toque na perna e das circunstâncias incómodas, mas não violentas, em que muitas de nós já estivemos. Comparar Weinstein a episódios menores desvaloriza as vítimas reais. Grave é o juiz do Tribunal da Relação do Porto ter sido conivente com um brutal acto de violência doméstica. Grave é a desigualdade salarial entre homens e mulheres (que o Governo de António Costa acaba de tentar reduzir). Grave é a discoteca Urban Beach, em Lisboa, não deixar entrar negros (a cegueira é tal que nem o atleta olímpico Nelson Évora escapou). Grave é o contínuo silêncio que persiste em Portugal sobre a pedofilia na Igreja.

As batalhas da igualdade, uma questão de direitos humanos, não se ganham com a doença do politicamente correcto.

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