Motorista de Sócrates: “Aquilo não veio de bancos, vem do esconderijo”

João Perna ponderou ficar com algum dinheiro por conta do que Sócrates lhe deveria. Motorista chegou a andar com 2500 euros no bolso.

Foto
Miguel Manso

“Aquilo não veio de bancos, não veio de nada. Aquilo vem do esconderijo, pronto”. Era assim que o motorista de José Sócrates, João Perna, falava com as pessoas que lhe eram próximas sobre a proveniência das avultadas verbas gastas pelo ex-primeiro-ministro.

Numa altura em que se queixava de o patrão não lhe ter pago tudo aquilo que lhe devia, o motorista chegou a equacionar deitar a mão a algum do dinheiro que José Sócrates fazia passar pela sua conta bancária. Apesar de ganhar apenas 1200 euros mensais – metade dos quais “por fora”, segundo o próprio –, João Perna movimentava na sua conta elevadas somas.

Cerca de dois anos depois de começar a trabalhar para José Sócrates por indicação do ministro Vieira da Silva, ao que explicou durante os interrogatórios a que foi sujeito como arguido do processo Operação Marquês, o motorista mostrava-se farto. “Há-de pagar tudo o que ele me ficou a dever, o que ele não me pagou. Foi subsídios e não sei quê (…), mas de preferência agarro-me ao dinheiro, que ele não tem provas, não tem nada. Aquilo é tudo pela porta do cavalo. F***, esse é que é o meu fundo de maneio”.

Conta-corrente com o patrão

Tinha uma espécie de conta-corrente com o patrão, acabou por dizer o motorista às autoridades, destinada a pagar-lhe despesas que iam desde as contas dos restaurantes até às reparações do Mercedes, passando por despesas no dentista.

Numa só vez João Perna admite ter passado um cheque de 6050 euros à clínica Malo. “José Sócrates deu-me o dinheiro, acho eu que foi em numerário, para fazer o depósito e depois pagar lá à Malo Clinic”, recordou durante o interrogatório. “Disse-me: ‘Para não ires com este dinheiro todo, depositas’”. Noutras ocasiões, porém, chegou a andar com 2500 euros no bolso para as tais despesas quotidianas: “Eu ficava receoso de andar com aquele dinheiro, mas também ficava receoso de saber que se ele precisasse dos 2500 eu não os tinha comigo”.

Numa conversa com a ex-mulher, João Perna descreve como ainda no dia anterior o empresário amigo de Sócrates, Carlos Santos Silva, tinha ido ter com o ex-primeiro-ministro “com uma granda mala cheia da guita”, e como o dinheiro era gasto com grande facilidade: “Isto é um crime, como é que de um momento para o outro desaparece tanto dinheiro, tanto dinheiro, tanto dinheiro (…). Ainda agora só de telemóvel foram 1500 euros. Porra, até dói, não é? E depois as pessoas têm de viver com o ordenado mínimo.” 

No interrogatório acabou por afirmar que não se referia a nenhuma mala real: “Claro que não vi uma mala cheia de dinheiro, é uma maneira de se falar. Ele não tinha dinheiro no dia antes e no dia a seguir o dinheiro aparecia!”

Distribuía envelopes com dinheiro

João Perna também distribuía envelopes com dinheiro pelas mulheres que o patrão ajudava – a mãe, mas também as namoradas e algumas amigas. Há interrogatórios em que jura que não sabia ao certo o que transportava, que só desconfiava. Noutros admite que nalguns casos sabia. Há escutas, porém, que são inequívocas, como a tal em que fala com um amigo sobre a possibilidade de ficar com parte do dinheiro que lhe era entregue por Sócrates para pagamentos, por conta dos subsídios de Natal e de férias que dizia estarem em falta: “Mesmo que eu fosse obrigado a devolver… que eu não acredito que ele entrasse por aí, porque aquilo veio tudo escondido, tás a perceber? Aquilo não veio de bancos, não veio de nada, vem do esconderijo, pronto.”

O advogado que João Perna teve nos seus primeiros dias de prisão foi pago pelo patrão. Ainda assim o motorista não escondeu que não gostava de lidar com Sócrates: “Não tinha relações pessoais com ele, era uma pessoa muito distante. Durante o primeiro mês não sabia o meu nome sequer.”

Na tese do Ministério Público, o dinheiro de Sócrates foi-lhe dado por Carlos Santos Silva para pagar favores que o ex-primeiro-ministro teria feito ao Grupo Lena enquanto governante. Já o ex-governante sempre tem dito que o amigo lhe fazia empréstimos, que ele já terá devolvido em parte.

Contactado pelo PÚBLICO, um dos advogados de José Sócrates, Pedro Delille, escusou-se a comentar as declarações e as escutas de João Perna, desvalorizando o seu valor processual. “Não são juridicamente relevantes. São questões da vida privada das pessoas”. O defensor do principal arguido da Operação Marquês considera “um nojo” investigar ou noticiar o que andou João Perna a fazer na sua vida profissional, bem como as conversas que teve com os amigos. 

Sugerir correcção
Ler 19 comentários