A culpa não é deles, é nossa

Quando olhamos para o outro lado, quando continuamos a frequentar pessoas e espaços que praticam abusos de poder, estamos a ser cúmplices e parceiros de uma sociedade pior.

A sucessão de casos de assédio a que estamos a assistir é grave pelo que revelam, mas num certo sentido já interessam pouco. Há que condenar os criminosos, ajudar as vítimas a recuperar e seguir em frente.

O que interessa, e muito, é criar as condições para impedir esta cultura absolutamente asquerosa que dá a quem tem poder o direito de abusar de quem não o tem. O problema não é um louco que abusa de todas as mulheres que apanha à frente — o problema é do sistema que o protegeu, a ele e todos os outros abusadores. E esse sistema é responsabilidade nossa, nasce da sociedade que criamos e em que participamos todos os dias. É um sistema em que veneramos os poderosos e em que culpabilizamos as vítimas por serem isso mesmo, vítimas.

E sim, isto tem tudo a ver com as cores, os livros e os brinquedos para meninas e meninos. É bacoco que em pleno século XXI ainda seja preciso explicar que, quando contribuímos para subalternizar a mulher desde pequena, estamos a facilitar o seu abuso. É ridículo que tantos homens só percebam isto quando as filhas chegam à adolescência — e que tantos mais nem nesse momento abram os olhos. Se os trogloditas que abusam de mulheres e homens com menos poder não conseguem evoluir, terão de ser afastados pelos seus pares. Por todos nós, enquanto sociedade. E para isso é preciso dar poder a quem não o tem, algo que se faz desde o momento inicial — com brinquedos, com comportamentos, com exemplos.

Sim, a cultura muda-se desde o berço. Sim, as sociedades mudam de hábitos, adaptam-se, integram franjas de população. Evoluem. Muitas vezes os direitos são conquistados a pulso, porque não há outra forma. Quantas pessoas morreram para acabar com a escravatura? Ou para garantir o voto às mulheres? Ou para assegurar o direito de asilo a refugiados de guerra? E ainda assim, sabendo isto tudo, continuamos a descriminar, a facilitar o abuso no trabalho, na escola, na família, no país. Não fazemos o suficiente enquanto sociedade, enquanto grupo, para resolver isto. Somos piores do que imaginamos.

O que verdadeiramente interessa agora é que, por uma vez, o direito à indignação que é tão comum nas redes sociais seja usado para algo útil. Indignemo-nos contra o juiz que desvaloriza a violência doméstica e que recorre à Bíblia, indignemo-nos contra a ridícula pena suspensa de um ex-ministro que bateu na mulher, indignemo-nos contra a discoteca que tem seguranças racistas protegidos pela gerência. Mas façamos, antes e depois disso tudo, o nosso próprio trabalho: olhemos à nossa volta para ver se há abusos. E denunciemos.

Quando olhamos para o outro lado, quando continuamos a frequentar pessoas e espaços que praticam abusos de poder, estamos a ser cúmplices e parceiros de uma sociedade pior. A culpa não é só dos outros, é de todos nós. E compete-nos a todos, em grupo e em sociedade, melhorar. Porque precisamos disso para evoluir.

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