Boa morte e morte bela: o dia dos defuntos

Raras são as vezes que o Homem não adapta uma atitude de evasão perante a morte.

A morte é uma experiência vivida de um modo especial por parte do ser humano e sempre foi objecto de uma veneração particular, que desde os tempos mais remotos construiu à sua volta uma trama de conjecturas, que a converteram em tabu.

Desde a noite dos tempos, a sequência e a estrutura “performativa” desta experiência foram assumidas como um cânone, que de geração em geração e por amor para com os antepassados, se têm mantido unidas na história. É um acto expressivo, com uma regularidade notória e que, por estar decantado num formalismo particular, não é sujeito a variações espontâneas. Qualquer metamorfose nos seus aspectos exteriores apenas se dá em função das exigências espirituais e cénicas de cada época.

Todos temos presente que mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra morreremos; as únicas interrogações são o dia e a hora. Cativos destas ideias e o profundo desejo de obter a imortalidade, encontramo-nos num terreno propício à angústia, ao desespero e à solidão e, num campo privilegiado para as raízes das crenças, religiões e superstições se formaram e nutriram na tentativa de explicar tudo e apaziguar medos. Por sabermos que temos um prazo, alguns filósofos descreveram o ser humano como um ser para a morte. Mesmo assim, raras são as vezes que o Homem não adapta uma atitude de evasão perante ela. É conhecido um sermão de 1666 de Bossuet que denunciava esta atitude: “É uma estranha debilidade do espírito humano que a morte jamais esteja presente nele, por mais que ela nos apareça em tudo debaixo de mil formas diferentes [...] os mortais preocupam-se tanto de sepultar os pensamentos sobre a morte como de enterrar os mortos [...].” Por isso, falar dela é tabu, mórbido e macabro senão de mau gosto.

Ao contrário dos animais, para quem a morte é uma circunstância natural e cujo cadáver se transforma em coisa, para o ser humano a morte é um drama estranho e difícil: o seu corpo deixa de ser algo vivo mas não se transforma em coisa. No entanto, até ao presente nenhuma filosofia conseguiu libertar a humanidade dos temores da morte. Nem a crença no Além, nem a recompensa da fama, nem a prolongação do falecido nos seus filhos são consolo suficiente para atenuar a ideia do momento final. Considerada como a nossa primeira experiência metafísica e mística, a morte foi ao mesmo tempo estética e religiosa pelo desconcertante enigma que terá representado aos olhos dos nossos primeiros antepassados o “espectáculo” da transformação de um semelhante em “gelatina anónima”. 

O surgimento da Arte ou da Imagem está associada à morte e é por esta via que a Arte e a Imagem podem ser entendidas como “terrores domesticados”.

Nas sepulturas serviram como meio tranquilizador para enfrentar esse medo ao vazio e ao estado de impessoalidade ou de nada em que se transforma o ser pela morte. Servindo como meio de representação e de comunicação entre o visível e o invisível, entre o temido e o tranquilizador, cumpriu a função de mediadora e de comunhão entre duas realidades opostas: unir presentes ao ausente.

A Arte Funerária converteu-se em receptáculo para recordatórios e orações, ao mesmo tempo que identifica um defunto ou substitui-o, absorvendo por isso o simbolismo de museu, casa, templo e altar onde se vai rezar e reviver ausências e memórias.   

Apesar de a sociedade tecnológica em que vivemos não saber que fazer com os mortos e se nas aldeias ainda existe alguma convivência com eles, nas cidades, pelo contrário, os mortos evitam-se e a morte burocratizou-se. Transformando-se no espelho da sua vivência. Numa sociedade que gira em torno de uma organização socioeconómica, cujos valores são apenas o êxito, a produção e o lucro, o culto da morte não tem razão de existir.

Da boa morte passou-se à morte bela, e da secularização aos secularismos invasores num desafecto total à religião. Onde o Além vai perdendo em favor do Aquém. Mas, paradoxalmente, cada dia 2 de Novembro os cemitérios enchem-se de flores como símbolo deste culto.

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