A monstruosa sombra do ciúme

Ao contrário do que diz o juiz, o acórdão torna “desculpável” a violência doméstica em desfavor da mulher.

Parece fado mas não é. Há precisamente três décadas (em 1987) escreveu Caetano Veloso uma canção onde dizia: “Sobre toda estrada, sobre toda sala/ Paira, monstruosa, a sombra do ciúme.” O tema, antiquíssimo, serviu também para o disco de estreia da cantora Ana Bacalhau, que numa canção com título idêntico à de Caetano (Ciúme), diz: “Ciúme que não sai do peito/ É espinho que corta a direito/ E queima como sal/ A ferida onde fermenta todo o mal.” Enquanto nos ficarmos pela música, não fere. Mas já no dia-a-dia alimenta esse flagelo a que chamamos violência doméstica.  

Vem isto a propósito do muito falado caso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre um caso de violência exercida por dois homens sobre uma mulher, que um tribunal puniu de forma que o Ministério Público considerou leve. Recorreu, mas o recurso gerou um acórdão surpreendente, onde se dizia que “podia ter sido ponderada uma atenuação especial da pena” para um dos arguidos. Apontado a dedo, veio o juiz Neto de Moura, autor do acórdão, dizer que as suas palavras estavam a ser “clara e intencionalmente deturpadas” e que ele até “condena a violência doméstica”. Fomos ler.

Tem 20 páginas, lê-se rapidamente. Convém, antes, descrever os envolvidos. A, a mulher; X, o marido; Y, o amante. A estava separada de X desde Março de 2015. E teve um relacionamento amoroso com Y, no final do ano anterior, durante dois meses, Novembro e Dezembro de 2014. Separada já de ambos (e com uma filha do primeiro), continuou a ser perseguida pelos dois. Com telefonemas, mensagens, insultos, ameaças. Há uma lista, no rol dos “factos provados.” Até que um dia Y, que insistentemente a perseguia, abeirou-se do carro de A, que estava ao volante, obrigou-a a passar para o banco do lado, e foi conduzindo o carro pelas ruas de Felgueiras. Como ela não cedesse a retomar a relação com ele, telefonou ao marido e manietou-a enquanto este chegava ao local. Aí, o que fez X? Agrediu Y, o amante? Não, agrediu a mulher, enquanto o outro a agarrava. E continuou a agredi-la, com uma moca de pregos, na cabeça e em várias zonas do corpo. A vingança dos machos contra a fêmea resistente. O resultado prático da monstruosa sombra do ciúme.

Neste comportamento inominável encontrou o tribunal, para X (o marido), atenuante: agira “toldado por sentimentos de revolta e ciúmes” e, além disso, estivera internado devido a uma depressão. Mas tinha em casa não só a tal moca de pregos (que usou para agredir A), mas também uma pistola, uma espingarda e um revólver, todos eles ilegais, além de várias munições (está nos autos). Daí as penas: 1 anos e três meses de prisão para X, 1 ano para Y (ambas suspensas), acrescidas de várias multas.

O recurso para a Relação agravou a sensação de injustiça. Porque o juiz Neto de Moura concluiu que “a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente”. Eis um excerto, sem cortes: “Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse. Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.” Não é isto validar a violência doméstica? Noutro acórdão, onde também citava a Bíblia e até um provérbio “do sábio rei Salomão”, o mesmo juiz já escrevera: “Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral.”

O que é terrível não é apenas descobrir juízos destes; é saber que eles já levaram a muitas sentenças (irrevogáveis, hoje) e a outras tantas injustiças. Porque, ao contrário do que diz este juiz, isto torna “desculpável” a violência doméstica em desfavor da mulher, vítima silenciosa de barbaridades, de coacções, de ameaças e violências a que só a custo escapa. Ao menos que a lei a defenda, o que não se faz exibindo “alguma compreensão” para com os agressores.

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