“A literatura parece viver o seu delicado crepúsculo”

O escritor brasileiro Milton Hatoum esteve em Portugal para participar no festival literário Folio, em Óbidos, e para apresentar em Lisboa a reedição do seu romance mais conhecido, Dois Irmãos.

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Milton Hatoum em Lisboa Ricardo Lopes
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Milton Hatoum em Lisboa Ricardo Lopes

Milton Hatoum (n. 1952) é um dos mais importantes escritores brasileiros da actualidade. Nascido em Manaus numa família de emigrantes libaneses (do lado paterno), estudou arquitectura, mas depois de ter vivido em Madrid, Barcelona e Paris, dedicou-se à literatura. Autor de vários livros, quase todos publicados em Portugal, tornou-se sobretudo conhecido pelo romance Dois Irmãos (ambientado em Manaus) — agora por cá reeditado pela Companhia das Letras —, que no Brasil deu origem a uma minissérie produzida pela Globo e a uma novela gráfica. Passou por Lisboa e por Óbidos, onde participou no festival internacional de literatura Folio, pouco tempo depois de ter lançado no Brasil o seu mais recente romance, A Noite da Espera — o primeiro volume da trilogia O Lugar mais Sombrio. Ao PÚBLICO falou de literatura, dos emigrantes que lhe enchem dois romances, do Brasil e da situação política actual.

Há pouco, na apresentação do romance [Dois Irmãos, Companhia das Letras], disse que a literatura perdeu importância porque foi sequestrada por outras linguagens.
É um sinal do nosso tempo. Escolhemos a pressa, a rapidez, a velocidade e a superficialidade. Parece que a banalidade se tornou um género artístico também. Até a arte foi banalizada. Tudo é considerado arte. Os cadernos culturais dos jornais minguaram, foram reduzidos, alguns desapareceram. A literatura parece viver o seu delicado crepúsculo. Mas ainda acredito que há muitos leitores, dos que gostam da boa literatura. Há leitores exigentes, e são esses que de facto interessam ao escritor. Não quero ter uma multidão de leitores superficiais, prefiro ter cem leitores exigentes.

Qual é hoje o papel de um escritor com a sua dimensão no Brasil? Se é que os escritores ainda têm alguma importância.
O Brasil não leva os seus escritores a sério. Não me posso lamentar porque alguns dos meus romances alcançaram números muito grandes, que é uma coisa que me surpreende. Sobretudo depois da minissérie [baseada no romance Dois Irmãos]. Mas os nossos políticos são iletrados. A maioria deles certamente nunca leu um bom livro. São torpes e, basicamente, em termos literários, são analfabetos. Seria injusto dizer que são todos, mas a maioria deles são pessoas toscas. Por isso também são eleitos, porque eles não dão ao povo brasileiro condições para que as pessoas sejam formadas numa educação pública de qualidade. Eles querem manter o povo ignorante para perpetuar esse ciclo de poder versus ignorância. O que é uma coisa cruel, perversa. Eles praticam o exercício da crueldade.

Como vê o Brasil hoje?
O título do meu novo romance é A Noite da Espera [o primeiro volume de uma trilogia, publicado recentemente no Brasil]. A espera contém sempre alguma esperança. A História é cheia de possibilidades e de mudanças, nunca é cristalizada. Há uma ascensão da extrema-direita, que acho perigosíssima, mas haverá também uma reacção firme ao fascismo.

Surpreende-o que no Brasil pessoas como Jair Bolsonaro [deputado federal] tenham uma adesão de eleitores tão grande?
Não, não me surpreende nada. É uma sociedade conservadora, de fundo autoritário e patriarcal, e agora ainda mais agravada pelo poder dos pastores evangélicos. O povo é sempre manipulado. Neste aspecto, a sociedade não mudou muito desde os anos 30, ficou mais complexa, mas o fascismo continua lactente. Foi uma parte da elite política e económica, e uma parte também dos media, que planeou o golpe parlamentar. Isso está muito claro hoje pelas conversas telefónicas dos políticos do PMDB, que foram divulgadas. Planearam minuciosamente a destituição da Presidente Dilma.

Tiveram de ter a cumplicidade do poder judicial.
O poder judicial é cúmplice de tudo, das nossas mazelas e das nossas iniquidades. O nosso supremo tribunal recuou, jogou a toalha, já não quer mais saber, já não quer fazer mudanças estruturais. Ou seja, as mudanças políticas estruturais não foram feitas, nem serão feitas a curto nem a médio prazo.

Numa entrevista disse: “Quando acabo um livro, quando o entrego ao editor, é porque já escrevi uma verdade íntima.” Essa verdade é perceptível ao leitor ou é uma coisa só sua?
Acho que o leitor percebe essa verdade de que falo. O Conrad disse que quando escreveu Vitória, que acreditava que a personagem estava viva. A propósito disto, o Borges dizia que nós, leitores, devemos acreditar na crença do escritor de que as personagens estão vivas. É isso que tem de passar para o leitor dentro de uma perspectiva realista. Mesmo em livros como Orlando, de Virginia Woolf, em que a personagem vive mais de cem anos, e que são dois, na primeira parte um homem e na segunda parte uma mulher, mesmo nessas personagens tendemos a acreditar. Esse é um pacto entre o leitor e o texto. Quando a vivência pessoal do autor participa do texto, ela já não é mais a vida do autor, ela é ficção.

No romance Dois Irmãos, as coisas são por vezes muito veladas. O narrador, por exemplo, de início, não se percebe bem quem é. Foi uma ideia propositada, ou quando o começou a escrever também não sabia bem quem ele era?
Foi intencional. Este é um romance de formação, um género que admiro muito. Ele narra o drama familiar, mas ao mesmo tempo ele está narrando a sua própria transformação, a passagem desse olhar ingénuo para um olhar mais maduro e adulto. Ele é o porta-voz da vida familiar, ele que é marginal a essa família. Ele que é o filho bastardo, ele que está no limiar, na soleira, entre o fora e o dentro, ele nem é totalmente da família mas não lhe é totalmente estranho. Foi essa ambiguidade que tentei trabalhar, e o modo como ele adquire consciência de todos esses problemas na vida dele.

A cidade de Manaus aparece no livro como um encontro de vários mundos. Esta foi ainda a Manaus que conheceu?
Manaus mudou muito, porque em 1977 tornou-se uma zona franca, o que atraiu muitas empresas estrangeiras. De maneira que hoje Manaus é uma das cidades mais cosmopolitas do Brasil, tem gente de todo o lado. Não só aqueles emigrantes históricos, os judeus marroquinos, os libaneses, os sírios, os espanhóis, mas uma nova leva de pessoas que trabalham nessas empresas. E isso é muito curioso, porque até a culinária japonesa, que é à base de peixe, o sushi, em Manaus é feita só com peixe da Amazónia. O Brasil tem essa característica, como a tal antropofagia [movimento cultural] de que falava o Oswald de Andrade, o Brasil devora essas culturas estrangeiras e vai criando uma nova cultura, que é a brasileira. A única coisa que de facto nos une é a língua portuguesa, e isso é uma façanha.

Curioso também o facto de os emigrantes se obrigarem a falar português, como aconteceu com os seus ascendentes, de não formarem guetos linguísticos.
A língua é uma grande afirmação, inclusive da nossa personalidade, do nosso mais profundo modo de ser. E a língua portuguesa no Brasil, com os seus diferentes sotaques, é de facto um modo de os emigrantes se afirmarem num novo país. Só há uma cidade brasileira que é oficialmente bilingue, São Gabriel da Cachoeira, que fala uma língua indígena, tucano, cuja maior parte da população é de origem tucana. Acho que é graças a essa formação multiétnica que, ao contrário dos americanos, não temos essa mania de classificar: eu sou libano-brasileiro, ele é sino-brasileiro, ou afro-brasileiro. Não existe isso. Somos todos só brasileiros.

Numa entrevista disse que “o romance é melhor quando remete para o passado”. Isso acontece em Dois Irmãos, em que escreve sobre o início do século. O presente não dá boa literatura?
Acho que o presente dá boas reportagens, verdadeiras. O presente e as circunstâncias pertencem mais ao jornalismo do que à literatura. O passado acho que aparece com mais força na literatura, porque a passagem do tempo permite que a memória e a imaginação dêem o seu voo. A memória e a imaginação são irmãs gémeas, andam sempre juntas. Não descolam uma da outra. Quando escrevo sobre algo que aconteceu há 30 ou 40 anos, tenho a absoluta certeza de que vou inventar. O passado é apenas um pretexto para que algo seja pensado. O passado tem aquela atmosfera nebulosa, como numa pintura impressionista, em que as formas já não são mais nítidas, e isso é óptimo para a imaginação. Como um remo dentro de água e que causa aquele efeito de reflexão. A literatura é a reflexão, não é o remo, é a imagem distorcida desse remo.

A literatura é feita do particular para invocar o universal. A sua pátria literária é Manaus?
Não só Manaus. No meu romance Cinzas do Norte há uma epígrafe, duas frases breves do Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa: “Eu sou de onde nasci. Sou de outros lugares.” Estas frases ligam-nos à nossa origem, mas a nossa origem é difusa. Sinto-me português nesta ruela [em Belém, Lisboa], aqui lembro-me de Ouro Preto, para mim esta é a imagem das cidades históricas mineiras. Mas quando estiver lá vou certamente me lembrar desta estreita ruela de Belém. Nós somos de muitos lugares, nasci em Manaus, passei a minha infância e a juventude lá, e escrevi sobre isso. Mas o meu novo romance, que acaba de sair [no Brasil], já é totalmente ambientado em Brasília. Sigo a minha vida, ou a minha vida me segue, do ponto de vista da literatura.

Cresceu na comunidade libanesa de Manaus. Isso trouxe influências para a sua escrita?
Provavelmente não teria evocado a cultura dos emigrantes nos dois primeiros romances, Relato de Um Certo Oriente e Dois Irmãos. Ter nascido e crescido nesse pequeno e diminuto Líbano na floresta, em Manaus, aguçou a minha percepção em relação ao outro, ao diferente, ao estranho. Isso foi uma riqueza. Ser filho de emigrantes significou logo o contacto com outras línguas, e também com a cultura indígena, porque vivia em Manaus. Dizem que a mestiçagem no Brasil está no centro da nossa formação. Mas isso não é só verdade para o Brasil, se pensarmos na Península Ibérica, por exemplo, a mestiçagem aqui foi riquíssima. Basta olhar para Lisboa e para os seus bairros, a presença dos judeus e dos árabes durante mais de três séculos, isso teve de ficar impregnado na cultura portuguesa. Muitos não querem aceitar isso.

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