A “guerra civil fria” que a Rússia tenta acabar

Lenine e Estaline ou nem Lenine nem Estaline. O extremismo da era soviética deixou marcas e a Rússia quer apagá-las com engenharia aplicada à História: viver o bom, apagar o mau. Mas há imagens duras que impedem o esquecimento da revolução. Como a que parou um grupo de rapazes num museu de Moscovo.

Foto
Putin no Mural do Pesar Reuters

Algures a meio de uma visita ao museu, um grupo de rapazes com os seus 12 anos desiste da brincadeira e concentra o olhar numa enorme fotografia colada na parede. Aí, uma família de camponeses russos fotografados poucos anos antes da “Grande Revolução Socialista” de 1917 expõe com crueza a condição de vida nos campos da Rússia nos tempos do czar Nicolau II. Os rostos são magros. O olhar cavernoso. Os cabelos enriçados. As roupas, umas calças remendadas e uma túnica tradicional, indigentes. Os pés estão descalços e, pelo que se percebe entre a falta de nitidez da imagem, sujos. Os rapazes perdem a atenção naquela imagem e não nas metralhadoras, nas fardas, nas tarjas coloridas ou nos cartazes esteticamente ousados com que se fez e celebrou a revolução. Talvez porque aquela imagem é, entre todas as que viram na exposição “Código da Revolução: 1917”, no Museu da História Contemporânea da Rússia, a que mais os interpela e lhes mostra um mundo desconhecido: o da miséria absoluta do tempo dos czares. Ou, por outras palavras, a força motriz da Revolução.

Vladimir Legoida está longe de ser um dos entusiastas da insurreição, mas seria capaz de entender o apelo à indignação daquela imagem no contexto daquela exposição que, entre outros objectivos, pretende “ajudar a sociedade contemporânea a tirar lições da História”. Vladimir, formado em Relações Internacionais e pós-graduado em Ciência Política com uma tese sobre a religião civil nos Estados Unidos é director do departamento de comunicação do Sínodo Sagrado da Igreja Ortodoxa da Rússia e percebe que na origem da revolução houve uma vontade de “trazer justiça” (embora se tenha tornado “um pesadelo”) a uma sociedade e a um regime que tinha libertado os servos da gleba apenas 50 anos antes (em 1861), que os condenava a dependerem dos proprietários nobres, que lhes negava os mais básicos direitos cívicos, que os condenava a ciclos perpétuos de pobreza. Não havendo um problema com as causas das revoltas que entre Fevereiro e Novembro de 1917 derrubaram um regime com 300 anos e criaram a primeira república “popular” do mundo, o que falta então para que a Rússia se orgulhe do seu maior contributo para a História europeia (juntamente com a sua influência decisiva na derrota alemã em 1945) de sempre?

O problema não é o que falta, mas o que existe. E no inconsciente colectivo da Rússia existe Lenine e existe Trotski e existe Lavrenti Beria (o implacável carrasco do KGB) e existe Estaline. “Há quem diga que ainda vivemos uma espécie de guerra civil fria entre brancos (os apoiantes da Igreja e da monarquia derrotados) e os vermelhos (os bolcheviques que tomaram de assalto a revolução e seguraram as rédeas do poder)”, diz Vladimir Legoida. Mas esse não é o único problema. Mesmo entre Lenine e Estaline há divergências de opinião a provar que na complexa História russa do século XX tudo está longe de ser fácil. “A sociedade mudou de posição nos últimos dez anos na sua avaliação de Lenine e de Estaline”, diz Konstantin Mogilevskiy, historiador e membro da direcção da Sociedade Histórica da Rússia (que o Presidente Vladimir Putin indicou para organizar o programa da efeméride). Pessoas como ele, que nasceram depois das denúncias da barbárie de Estaline, no XX Congresso do Partido Comunista, em Fevereiro de 1956, aprenderam que “Lenine fez muitas coisas boas para a Rússia, ao contrário de Estaline”.

Agora, porém, continua Konstantin Mogilevskiy, as opiniões mudaram. Lenine mudou a Rússia personificada no retrato que prendeu a atenção dos rapazes no museu, mas hoje é uma realidade mergulhada num passado vagamente remoto. Estaline, pelo contrário, continua a ser ainda para as gerações mais velhas a personificação de um tempo mitificado. “Ele representa para muitos os anos da juventude”, repara Mogilevskiy. Fosse por convicção ou por anos sucessivos de propaganda e de lavagem ao cérebro, alguns dos russos que nasceram nos anos de 1930 e 1940 devem ter chorado no seu funeral. E, mais importante do que isso, Estaline é o rosto do momento em que a Rússia atingiu o estatuto de superpotência. “As pessoas estão a mudar as suas opiniões sobre ele a partir de duas realidades opostas: por um lado, há as repressões em massa”, as tristemente famosas purgas que assassinaram milhares de opositores no final dos anos de 1930. Mas, por outro, Estaline “é o grande vencedor da II Guerra Mundial”, nota o historiador.  

Para um país que depois do czar Pedro, o Grande (1672-1725) sempre teve como primeira ambição afirmar-se como uma potência europeia, esta vitória tem um peso incomparável. O dia 8 de Maio, data da capitulação da Alemanha, é a grande festa nacional. O dia em que as tropas vindas do Leste foram enviadas para travar o avanço dos alemães que se encontravam às portas de Moscovo é outro feriado (4 de Novembro). A outrora designada como “Grande Guerra Patriótica” talvez seja o único momento da era soviética que não divide as opiniões, o que coloca Estaline numa posição confortável para ser acolhido nos discursos oficiais. “Temos de aceitar a nossa História como ela é, com as suas grandes vitórias e as suas páginas trágicas”, dizia esta semana Vladimir Putin na inauguração do Mural do Pesar que homenageia os milhões de vítimas das purgas, das fomes impostas ou dos exílios forçados e letais de dissidentes na Sibéria.  

É esta a principal razão que leva o comité oficial que elencou 118 eventos para registar a efeméride do centenário da Revolução a evitar o uso de expressões como “comemoração” e ainda menos “celebração”. “Não se trata de uma celebração. O que nos importa é a reflexão sobre o que de facto aconteceu”, diz Konstantin Mogilevskii, ainda que uma tomada do poder na sequência de uma revolta de operários e de soldados seja um campo minado para a procura de factos. Vladimir Legoida vai mais longe: “Nós não usamos a palavra celebração, dizemos que está em causa é uma data muito importante da nossa História, que mudou a vida na Rússia e influenciou todo o mundo”, precisa. Ao despir o centenário da revolução de qualquer tipo de afecto, ao esvaziá-la de qualquer análise subjectiva, o Comité Organizador pretende essencialmente deixar o campo aberto para a ciência (a História). Uma tarefa difícil.

“Queremos é evitar o que se fazia nos tempos soviéticos, quando a visão da História, do que aconteceu era exactamente a visão que eles queriam”, diz Konstantin Mogilevskii. “Agora, não é assim: o programa da organização é determinado pelo comité organizador. O Governo não se mete”, diz o historiador especializado no mandado de Piotr Stolipin, um primeiro-ministro reformista que acabaria assassinado em Setembro de 1911. De resto, acrescenta Konstantin, “o próprio presidente da Sociedade Histórica da Rússia notou que, pela primeira vez em muitos anos, não é o Governo a dizer como se deve ler o passado”. O presidente, Sergei Nariyshkin, não é um historiador. Preside à Sociedade Histórica e lidera o SVR, um serviço de informações e de divulgação próximo do ministério dos Negócios Estrangeiros.

Todo este esforço de reduzir a revolução a factos assépticos denuncia uma tentativa de evitar atritos. Mesmo a Igreja Ortodoxa, uma das principais vítimas da perseguição soviética, ensaia um discurso conciliador sempre que fala do estalinismo ou da revolução. Na sua intervenção ao lado de Vladimir Putin na inauguração do Mural do Pesar, o Patriarca dos Ortodoxos, Cirilo I, deixou a pergunta: “Porquê aconteceu esta tragédia no século XX?”. E deixou a resposta: “Porque não se pode construir uma sociedade feliz sem Deus”. E ficou por aqui. Por muito que a ligação da cúpula ortodoxa à herança dos czares seja conhecida, “não podemos pintar toda a história soviética apenas com cores negras. Também houve coisas boas”, diz Vladimir Legoyda.

Para evitar dissídios entre essas duas franjas da sociedade russa que, afinal, resistem barricadas há mais de um século, o melhor mesmo seria juntá-las na organização dos eventos. O número de membros do comité ronda os 60, desde historiadores a artistas, gente da cultura e da sociedade civil. Como a sua regra de criação excluía os políticos, não há nomes formalmente indicados nem pelo Governo. Nem pelo Partido Comunista, que organizado numa Frente de Esquerda promete fazer uma comemoração própria dos eventos. No essencial, porém, o objectivo “é pegar nas coisas boas do passado e projectá-las para o futuro”, diz Legoida. “Não podemos deixar que as divisões do século passado continuem a existir na vida dos nossos filhos”, acrescenta.

Esse ideal purificado, despido de atritos e de clivagens sociais é aliás o que melhor serve a ambição da Rússia Sagrada, essa velha identidade que germinou na Moscovo original, consagrou-se com os Romanov, resistiu à era soviética e renasce na era de Putin. Vladimir Legoyda nota que a igreja ou os seus ministros “não podem fazer política”, mas nesse conceito sagrado e ideal delineado pela identidade cultural há uma evidente sintonia entre o poder espiritual da Catedral de Kazan e o poder político do Kremlin. O governo da igreja já não se faz por procuração do czar (quem manda é o Patriarca), mas no exercício do poder do Estado permanece a ideia antiga do “bom czar”. “Ao contrário do que acontece no Ocidente, na Rússia quem lidera é visto mais como uma espécie de ‘pai da Nação’, não como um gestor eficaz e competente”, diz Vladimir Legoida. Seja um czar, seja um comissário do povo ou um presidente.

No gigante euroasiático, essa figura paternal associada ao poder atravessou três regimes num século e permanece actual. Será eterna? Aí, vale a pena regressar à fotografia da família miserável de camponeses exposta no “Código da Revolução”. A Rússia, de acordo com um relatório do banco Credit Suisse de 2015 é, entre as economias desenvolvidas, a mais desigual do mundo, na qual os 10% mais afluentes dominam 87% de toda a riqueza nacional. Para quem procura lições na Revolução para projectar o futuro, talvez este facto seja um bom começo.

                                   

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