O que podemos aprender com o acórdão da Relação do Porto

Espera-se que o dia 11 de outubro de 2017 possa ficar recordado como o virar da página na História da Jurisprudência portuguesa.

Já muito se escreveu sobre o polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de outubro de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 355/15.2 GAFL.P1. Neste acórdão está patente uma subversão dos princípios constitucionais da igualdade de género, do Estado laico e da dignidade da pessoa humana, ao serem incluídas na respetiva fundamentação considerações fortemente discriminatórias da mulher, a par do apelo a preceitos da Bíblia que a própria Igreja portuguesa rejeita, como fundamento para a tolerância de atos violentos do marido em relação à mulher adúltera, comportamento cuja gravidade intrínseca resulta diminuída, à luz do supra mencionado acórdão. 

Após a consternação inicial e a incredulidade que dominaram a opinião pública dos últimos dias, urge retirar ilações para futuro. Sim, porque o acórdão em crise representa um perigo de descrédito generalizado no poder judicial e de desconfiança da sociedade nas suas decisões, que já se poderá ter manifestado nos acontecimentos recentes que envolveram, entre outros, o incendiar da bandeira de Portugal em frente ao Palácio da Justiça do Porto, onde se situa o Tribunal da Relação. Este poderá constituir um primeiro passo para o recurso à violência e à auto-tutela como formas privilegiadas do exercício de direitos. Em fim de linha, decisões como esta poderão pôr em causa o próprio Estado de Direito tal como o conhecemos.

No domínio da violência doméstica, a tolerância para com os agressores não é inédita, porque os tribunais, na sua prática diária, têm vindo a limitar excessivamente a aplicação do crime de violência doméstica aos casos de reiteração — e nem todos — ou a episódios isolados de gravidade apreciável, o que ocasionou a convolação pelos tribunais de muitas acusações deduzidas pelo crime de violência doméstica em crimes simples, como as ofensas à integridade física, as ameaças ou as injúrias, inviabilizando a aplicação de diversas medidas de proteção apenas previstas para as vítimas de violência doméstica, passando a impender sobre a vítima a obrigatoriedade de apresentação de queixa e afastando a possibilidade de ao agressor serem aplicadas penas acessórias, tais como a proibição de contactos com a vítima ou a frequência de programas de prevenção da violência doméstica.

A decisão sobre a pena a aplicar, a determinação da pena concreta, a opção pela suspensão da execução da pena de prisão, são operações de importância decisiva para o sucesso do combate a este flagelo social. O aplicador da lei deve estar particularmente sensibilizado para as elevadas necessidades de prevenção geral (dirigida à sociedade) que nestes casos se fazem sentir, sem que com isto se pretenda desvalorizar as necessidades de prevenção especial (dirigida ao infrator) ou instrumentalizar o condenado. A medida da culpa do infrator terá sempre que assumir-se como limite inultrapassável da pena, mas será também razoável afirmar-se que o cometimento de atos como os vertentes no acórdão em crise são subsumíveis a um grau de culpa não leve, desde logo pelas circunstâncias em que os mesmos se verificaram.

Imolar magistrados na praça pública expurgará o nosso sentimento de revolta, mas não resolve a questão de fundo.

Em Portugal encontramos hoje um edifício legislativo de proteção à vítima de violência doméstica de qualidade apreciável. Pecará, sem dúvida, por uma aposta deficiente na formação adequada dos aplicadores da lei, para que não subvertam o seu sentido, e na prevenção, que terá de iniciar-se desde o berço, com a educação parental, depois no infantário, na escola básica, no ensino secundário e na universidade. A cultura de não-violência e de respeito pela igualdade de género tem que ser transmitida como paradigma desde tenra idade. E porque falamos de Direito e de profissionais do Direito, a última palavra terá que dirigir-se necessariamente às universidades, ao Centro de Estudos Judiciários, à Ordem dos Advogados. É imperioso o reforço da formação neste domínio, pois de um problema de cidadania e de direitos humanos se trata.

Espera-se, pois, que o dia 11 de outubro de 2017 possa ficar recordado como o virar da página na História da Jurisprudência portuguesa, verdadeira guardiã do princípio da igualdade de género e do princípio da dignidade da pessoa humana.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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