Vítor Rua: um músico sem lugar a criar o seu próprio lugar

Não é fácil encaixá-lo e ele sabe-o. Do rock ao jazz, da improvisada à contemporânea, dos GNR aos Telectu, mas também a solo, é uma personagem singular na paisagem da música feita em Portugal. Esta terça-feira apresenta em sexteto, no Sabotage, em Lisboa, o seu novo álbum.

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Sorri quando lhe perguntamos qual julga ser o seu lugar no campo da música feita em Portugal das últimas décadas. “O meu lugar é provavelmente não ter lugar. Os do rock não me consideram do rock, os do jazz idem e os da música contemporânea a mesma coisa”, afirma o músico e compositor Vítor Rua. Percebe-se o que quer dizer. Não é fácil enquadrá-lo. Mas ao longo das últimas décadas foi criando o seu lugar. Se existe algo que o pode definir é que, independentemente dos lugares, das linguagens, das formações que integrou ou das colaborações que encetou, há sempre um elemento de inquietação nas suas abordagens. Fazer mais do mesmo não é com ele.

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Sorri quando lhe perguntamos qual julga ser o seu lugar no campo da música feita em Portugal das últimas décadas. “O meu lugar é provavelmente não ter lugar. Os do rock não me consideram do rock, os do jazz idem e os da música contemporânea a mesma coisa”, afirma o músico e compositor Vítor Rua. Percebe-se o que quer dizer. Não é fácil enquadrá-lo. Mas ao longo das últimas décadas foi criando o seu lugar. Se existe algo que o pode definir é que, independentemente dos lugares, das linguagens, das formações que integrou ou das colaborações que encetou, há sempre um elemento de inquietação nas suas abordagens. Fazer mais do mesmo não é com ele.

Foi assim quando co-fundou os GNR no início dos anos 1980, ou ao lado de Jorge Lima Barreto nos Telectu, ou nos inúmeros projectos a solo, nas colaborações ou na música que concebeu para outras áreas, do teatro à dança. E volta a ser assim em Do Androids Dream Of Electric Guitars?, o álbum que lançou em Julho, assinado como Vítor Rua & The Metaphysical Angels, e que é apresentado esta terça-feira, às 22h30, no Sabotage, em Lisboa.

Na verdade, são dois álbuns. No CD1 aborda a guitarra solitariamente. No CD2 temos os mesmos temas, com Rua ao lado de Hernâni Faustino (contrabaixo), Nuno Reis (trompete), Luís San Payo (bateria), Manuel Guimarães (piano) e Paulo Galão (clarinete), ou seja, a formação que o acompanhará em palco. O registo, adianta, faz parte de uma trilogia.

“Será que ainda é possível criar-se hoje um novo estilo musical? Foi essa a interrogação que me levou para esta trilogia”, diz ao PÚBLICO, adiantando que o músico, compositor e teórico inglês Chris Cutler produziu um texto sobre o disco onde descreve que o mesmo se funda em “composições sobre improvisações meta-idiomáticas, ou seja, que estão acima de qualquer idioma, mas onde todos os idiomas podem coexistir, tanto na vertical como na horizontal”.

O que tem sido feito até agora, avança ele, citando Frank Zappa ou John Zorn, “é criar um tema a partir de vários idiomas”: a lógica horizontal, com fragmentos de rock, jazz e outros géneros. “Aqui o que acontece é na horizontal e na vertical, o que não é comum. Ou seja, exagerando um pouco a realidade, para melhor me explicar, existem momentos em que podemos ouvir simultaneamente, na vertical, uma guitarra thrash-metal, uma guitarra jazz e uma guitarra flamenco.” Ouvindo-o tocar a solo no disco, em abordagens em que a guitarra tanto alimenta uma electricidade pouco melódica como sustenta um dedilhar acústico, em peças instrumentais com várias âncoras estilísticas, o que diz materializa-se. Mas como é que o seu processo criativo se desenrolou em grupo? “Esse foi um dos problemas”, reconhece, tentando explicitar o método empregue. “Como compositor, depois de improvisar, olho para as diferentes camadas de som produzidas e estruturo-as. Componho sobre improvisações. Mas se fizer isso com um músico e lhe disser para tocar o que está ali, já não é improvisação. Por isso, tomei a decisão de convidar os músicos um a um. Nunca estivemos juntos. Depois dei-lhes a ouvir elementos de cada tema e improvisaram a partir daí, acabando eu por depois regressar ao papel de compositor.”

A guitarra e os gatos

Ao longo dos anos, Vítor Rua abordou os mais diversos estilos sempre de forma personalizada, o que poderá indiciar que o álbum seja uma síntese singular desse percurso. “É verdade, traduz as minhas experiências, mas não foi consciente”, diz, discorrendo sobre o acaso na criação. “Depois de ter recuperado uma velha guitarra clássica de 1980, comecei a tocar nela no jardim, enquanto olhava pelos meus gatos. Como tinha de estar concentrado, não podia fazer coisas complicadas. Um dia, intrigado com o que estava a produzir, porque não encaixava em nenhum estilo, acabei por gravar aquilo. Tinha poucas notas, não eram repetidas e pareciam não ter uma qualquer lógica melódica de ligação. E foi assim que fui criando tempos, ritmos, escalas e melodias diferentes.”

Poderia ter feito, como ele próprio sinaliza, “mais um disco de guitarra improvisada à la Derek Bailey”, mas não. Optou por aprofundar a sua descoberta, recorrendo a músicos com "o mesmo espírito multi-estilístico”, ao mesmo tempo que procurava uma nova relação com o silêncio, o que se traduziria numa sonoridade espaçosa.

“Durante os 30 anos de Telectu, e a solo, sempre gostei de reverberações longas e de um som poderoso com a guitarra. Aqui usei os instrumentos de forma diferente. Tenho pedais e processadores, mas resolvi utilizar a guitarra eléctrica pura. Isso levou-me a sentir e a produzir de forma diferente. De repente tive de lidar com os silêncios, de respeitá-los. E essa foi uma forma nova de compor.”

O disco é lançado pela Clean Fleed, uma estrutura editorial de prestígio, mas sem que Vítor Rua prescinda de utilizar os canais digitais de comunicação, divulgação e comercialização da sua música. “Ao longo dos anos acreditei, com custos pessoais, familiares e profissionais, no poder das redes sociais e da Internet em geral. Os Telectu nunca foram tão conhecidos no mundo como hoje”, refere, citando músicos e artigos que os nomeiam com respeito.

Ele próprio sente que o seu percurso se transformou depois da morte de Jorge Lima Barreto em 2011, e do consequente fim dos Telectu. “Pertenci a inúmeros grupos e formações, mas de certa forma tive de reafirmar o meu nome. Agora tenho em 30 plataformas digitais 165 discos editados em meu nome”, revela. “São obras de muitos estilos e formações diferenciadas, que têm vindo a ser editados por uma editora espanhola nos dois últimos anos.”

Há quem veja , inclusive “colegas da música”, essa actividade prolífica com estranheza. “Dizem-me que é prejudicial, mas se for o John Zorn, o Elliot Sharp ou o Fred Frith é louvado”, ironiza. Uma coisa é certa. Abriu portas para as novas gerações portuguesas que abordam músicas exploratórias se afirmarem. Mas quase não existe ligação entre elas. Ele assume a sua quota-parte de responsabilidade: “É estranho, sim. Noutros países é incentivado. Aqui parece existir uma barreira. Porquê? Não sei. Existem responsabilidades de ambas as partes. Não tomo a iniciativa de as ir descobrir, mas sinto do lado de lá a mesma coisa.”

Esta terça-feira, em Lisboa, há uma boa oportunidade para se ir descobrir Vítor Rua.