Motivar a função pública – um imperativo nacional

Outubro tem sido um mês de contestação social na função pública: para além da greve  convocada pela Frente Comum dos Sindicatos da Função Pública da última sexta feira, houve a dos inspectores da ASAE (9 de Outubro), médicos das regiões Sul e Ilhas (25 de Outubro), e as entretanto desconvocadas greves dos enfermeiros, dos juízes, e dos técnicos de diagnostico e terapêutica. Não discutirei se estas greves partem de reivindicações razoáveis dos trabalhadores. Em primeiro lugar, por conflito de interesses – sou trabalhadora do sector público. Em segundo lugar, porque me revejo nas palavras do Presidente da República: “o que é natural em democracia é haver greves, é um instrumento de luta dos trabalhadores”. O meu objectivo é mais modesto: contribuir com alguns elementos para reflectir sobre a actual situação do trabalho na função pública em Portugal.

Uma das reivindicações é o nível salarial, no seguimento das acentuadas, e ainda não recuperadas, perdas de poder de compra entre 2011 e 2016. Os salários públicos em Portugal estão abaixo da média da OCDE. Em 2015, uma pessoa que exercia uma função administrativa de secretário ganhava cerca de 60% das suas congéneres da OCDE; este rácio, para um funcionário superior, era de 70%. Estes valores são ajustados para as diferenças de custo de vida; ou seja, um funcionário superior português pode adquirir apenas 70% dos bens e serviços que que um funcionário de categoria equivalente pode adquirir, em média, na OCDE. Graças aos avanços da economia comportamental (recentemente premiada com o prémio Nobel atribuído a Richard Thaler), sabemos que as pessoas avaliam as situações a partir de um ponto de referência – neste caso, a situação pré-crise; dificilmente lhes servirá de consolo que, quando comparados com o PIB per capita do país, os salários da função pública são, para algumas categorias, mais generosos em Portugal do que a média da OCDE. Sabemos também que os indivíduos têm “aversão às perdas”, pelo que sofrem mais com perdas do que beneficiam com ganhos de igual valor. Uma investigação recente mostra que, mesmo depois da economia recuperar para níveis pré-crise de PIB, as pessoas não recuperam o seu nível de bem estar psicológico. Os autores concluem que as perdas de poder de compra têm um impacto entre duas e oito vezes maior do que os ganhos equivalentes. A implicação deste facto é simples e poderosa: não é necessariamente boa política promover o crescimento de longo prazo com medidas que causem contrações no curto prazo.

A responsabilidade de criar um ambiente de trabalho que potencie motivação e satisfação é do empregador. Estudos feitos noutros países mostram que medidas de contenção de custos no sector público estão associadas a aumentos de stress e diminuição daquilo a que podemos chamar “ética” no local de trabalho (lealdade, confiança, compromisso, percepção de justiça). Quando, em 2011, se iniciou uma longa série de medidas de redução de custos – redução do emprego público, cortes remuneratórios, aumento do horário de trabalho, diminuição de oportunidades de formação profissional, congelamentos das progressões na carreira –, não foi dada a devida conta às consequências negativas das mesmas. Embora tenha havido políticas deste tipo de em mais de metade dos países da OCDE entre 2008 e 2013, Portugal encontra-se entre os que mais medidas adoptou e onde estas tiveram um maior impacto.

O momento é paradoxal: ao mesmo tempo que os cidadão são cada vez mais exigentes com o serviço público, este funciona debaixo de restrições de recursos (financeiros, de qualificações e pessoas) importantes. A urgência deste desafio levou a OCDE a publicar em 2016 um relatório intitulado “Engaging Public Employees for a High-Performance Civil Service”. Uma das recomendações é a realização de inquéritos regulares para avaliar a aspectos subjectivos da relação dos funcionários com o empregador público, em várias dimensões: envolvimento com o local de trabalho, adequação de competências ao tipo de trabalho, carga adequada em termos de horas e exigência, políticas de inclusão de minorias, integridade e ética no local de trabalho (práticas de bullying e assédio, por exemplo), qualidade das chefias e equilíbrio entre vida familiar e pessoal. Países como o a Austrália, Canadá, Islândia, Noruega e Reino Unido fazem inquéritos periódicos sobre todos estes aspectos. Alguns outros países, como a Alemanha ou a Irlanda, cobrem apenas alguns deles. Portugal destaca-se por não recolher qualquer informação sistematizada sobre estas questões.

Nos países que a recolhem, esta informação é regularmente compilada em relatórios para as chefias, que a usam para melhorar práticas de gestão e organização do trabalho, assistidas por um grupo de trabalho transversal aos vários serviços públicos, especializado em ajudar a implementar este tipo de melhorias. Em muitos casos, a informação compilada está ao dispor do público – por exemplo, o “Civil Service People Survey” do Reino Unido é publicado anualmente online. A recolha de informação tem permitido identificar políticas que melhoram a satisfação e envolvimento dos funcionários: maior transparência, melhor comunicação e relação com chefias, possibilidade de contribuir com sugestões para o serviço, sentido de justiça nas remunerações e promoções, incluindo uma política efectiva de formação.

Há muitas coisas fundamentais nas nossas vidas – a segurança perante ameaças externas e naturais, a defesa do ambiente, a saúde e a educação, para mencionar apenas algumas – para as quais dependemos do empenho das trabalhadoras e trabalhadores do sector público. Um passo importante para o melhorar é recolher, de forma sistemática e de acordo com as melhores práticas, informação sobre a satisfação destes no trabalho; publicitá-la em nome da transparência e de uma melhor cidadania; e utilizá-la para desenhar políticas, não necessariamente salariais, que tornem os funcionários públicos mais satisfeitos e empenhados.

A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

CIDADANIA SOCIAL - Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais www.cidadaniasocial.pt

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