A comida do passado, a do futuro e as nossas manias

Numa conferência em Lisboa sobre Food Studies e Food Design falou-se dos nossos exageros na relação com a comida e de como poderemos ser mais equilibrados.

Foto

A cena aconteceu na realidade: Sonja e Martin estavam a tomar o pequeno-almoço num hotel e repararam na mulher, sentada sozinha a uma mesa, que pediu seis ovos cozidos. Uau, pensaram, aqui está uma senhora com apetite. Quando os ovos chegaram, a mulher começou, metodicamente, a descascar um a um e, com a ajuda de uma colher, a retirar as gemas, que colocava num prato junto das cascas. No final, comeu apenas as claras.

Sonja e Martin — o casal de artistas austríacos Sonja Stummerer e Martin Hablesreiter, mais conhecidos como Honey & Bunny — ficaram tão impressionados com a cena à mesa do pequeno-almoço que a transformaram num vídeo para a sua série sobre comida e sustentabilidade.

Esta foi uma das histórias que contaram na 1.ª Conferência Internacional de Food Studies e Food Design, Experiencing Food, Designing Dialogues, que se realizou em Lisboa entre 19 e 21 de Outubro. Com formação em Arquitectura, os dois começaram há 15 anos a interessar-se pela forma como nos alimentamos e desenvolveram a partir daí um trabalho artístico que passa por performances, vídeos, exposições, livros.

No início, explicaram, o que lhes interessava eram sobretudo os hábitos e as regras. Porque é que um objecto adquire um determinado significado se usado num certo contexto? É isso que perguntam quando se fazem fotografar com o filho pequeno sentado numa bandeja. O objecto bandeja “é sinónimo de canibalismo”, o que, naturalmente, muda tudo nessa leitura da imagem.

Numa das suas performances colocam sobre a mesa, para a refeição, instrumentos hospitalares. Basta substituir uma tesoura de cozinha por uma de mesa de operações e a atitude das pessoas muda imediatamente, garante Sonja. Martin sugere uma outra experiência: “Comprem um piaçaba de plástico, lavem-no e pasteurizem-no cinco vezes, e depois mexam a panela da sopa com ele. Vão ver que a maioria das pessoas não vai querer comer a sopa.”

Nas pesquisas sobre a forma como nos sentamos à mesa, como usamos “uma arma” (a faca) para comer, como respeitamos quase religiosamente o espaço do outro (têm uma performance em que cada lugar à mesa está delimitado por arame farpado), Honey & Bunny chegaram aos temas da ética e da sustentabilidade e ao desejo de provocar mudanças na forma como nos alimentamos hoje.

É aí que surge o vídeo da mulher com os ovos cozidos ou outro em que, para denunciar a obsessão com a higienização, Sonja e Martin aparecem completamente cobertos de plástico, que têm de cortar para chegar aos seus pratos de comida. Ou, numa versão mais radical, vestidos como astronautas e deitados na cama sem poderem tocar directamente naquilo que comem. “Por favor, deixem-nos tocar numa batata”, ironiza Martin.

As performances organizadas por Honey & Bunny levantam questões sobre os nossos valores Cortesia Honey & Bunny/ stummerer / hablesreiter / koeb / akita
Aqui, a ideia é chamar a atenção para os custos escondidos da produção de alguns alimentos expostos nas prateleiras do supermercado, desde o trabalho escravo à destruição do meio ambiente,Aqui, a ideia é chamar a atenção para os custos escondidos da produção de alguns alimentos expostos nas prateleiras do supermercado, desde o trabalho escravo à destruição do meio ambiente Cortesia Honey & Bunny/ stummerer / hablesreiter / koeb / akita
Se numa mesa a tesoura da cozinha for substituída por um instrumento hospitalar, a atitude das pessoas muda imediatamente. Cortesia Honey & Bunny/ stummerer / hablesreiter / koeb / akita
Honey & Bynnu são formados em Arquitectura e desenvolveram um trabalho artístico que questiona a forma como nos alimentamos Cortesia Honey & Bunny/ stummerer / hablesreiter / koeb / akita
Cortesia Honey & Bunny/ stummerer / hablesreiter / koeb / akita
Fotogaleria
As performances organizadas por Honey & Bunny levantam questões sobre os nossos valores Cortesia Honey & Bunny/ stummerer / hablesreiter / koeb / akita

Algumas das performances que organizaram levantam questões sobre os nossos valores. Numa delas, as pessoas estavam sentadas frente a frente numa mesa comprida e eram-lhes apresentadas travessas que tinham de um lado comida toda branca e do outro comida preta. “Toda a gente queria comer a branca, e os que a tinham não a queriam partilhar com os que só tinham comida preta”, contam os dois artistas.

Noutra experiência, Sonja aparecia vestida de enfermeira e Martin de doente de um hospital. Ela tinha numa bandeja uma série de seringas e explicava às pessoas que continham “tudo aquilo que usamos na produção industrial, pesticidas, conservantes, etc.” (na realidade, tinham sumos de frutas). A escolha era simples, as pessoas podiam beber elas próprias o conteúdo das seringas ou dá-lo a beber do “doente” Martin. Quase todas optaram por o dar a Martin.

Por fim, num filme em que aparecem a percorrer os corredores de um supermercado, passam pelos vários produtos e vão encontrando outros casais (que são também eles próprios) que podem estar vestidos como militares sul-americanos, por exemplo — a ideia é chamar a atenção para os custos escondidos da produção de alguns alimentos, desde o trabalho escravo à destruição do meio ambiente. E tentar que as pessoas comecem a olhar para as prateleiras do supermercado de uma forma diferente, vendo o que à primeira vista não iam conseguir ver.

Profissões “verdes”

Como é que podemos criar dietas sustentáveis? Sonia Massari, directora do Gustolab International — Institute for Food Studies, em Roma, sublinha que quando fala de dietas não está a falar apenas do que ingerimos, mas da “produção sustentável”, ou seja, de “algo que seja bom para nós e para o planeta e não tenha tanto impacto no ambiente à nossa volta”.

Convidada para a conferência de Food Design e Food Studies, em Lisboa, veio dizer que acredita “num mundo de nativos sustentáveis”. Quando tanto se fala em “nativos digitais”, Sonia Massari defende que é importante começar-se a pensar em pessoas que se sentem tão naturalmente confortáveis num mundo sustentável quanto a actual geração se sente num mundo digital.

Foto
Sonia Massari diz que dentro de alguns anos vamos ter eco-chefs, pessoas ligadas à promoção de produtos locais, empregos ligados aos biocombustíveis, formadores em agricultura, consultores em sustentabilidade

E nada disto tem que ver com o voltar as costas ao que é moderno e voltar a fazer tudo como se fazia antigamente, explica. A ideia é precisamente usar a tecnologia para desenvolver a sustentabilidade, e dá exemplos: criar embalagens que nos mostrem o ciclo de vida de um alimento, para diminuir o desperdício; outras que são feitas de um material que serve de alimento aos peixes, o que significa que quando forem parar ao mar vão entrar na cadeia alimentar; uma aplicação que ajuda a organizar o circuito de distribuição de comida no bairro, contribuindo para aproximar os vizinhos; ou uma embalagem que tenha a quantidade exacta de carne vermelha que podemos comer por semana.

Tudo isto, diz Sonia Massari, vai significar uma alteração no mundo do trabalho. Nos próximos cinco, dez, vinte anos, há profissões que vão desaparecer e outras, “mais verdes”, que vão nascer — vamos ter ecochefs, pessoas ligadas à promoção de produtos locais, empregos ligados aos biocombustíveis, formadores em agricultura, consultores em sustentabilidade, “localizadores” que ajudarão a criar redes e a pôr as pessoas em contacto, e até “gestores de felicidade e simplicidade, para tornar a vida das pessoas mais feliz”.

Comida retro

Porque é que andamos obcecados com a comida do passado e fascinados com coisas como os cocktails de camarão, o bolo Floresta Negra ou as icónicas decorações culinárias da década de 1970? Foi esta a pergunta que Alison J. Clarke, investigadora de história do design da Universidade de Artes Aplicadas de Viena, trouxe ao congresso de Food Studies e Food Design de Lisboa.

Autora do livro Tupperware, the promise of plastic in 1950s America, Alison defende a importância de os alunos de Design conhecerem a história e as implicações desta. Tal como os tupperwares e sobretudo as famosas festas da Tupperware e a importância que tiveram para as donas de casa suburbanas da América dos anos 50.

Foto
Alison Clarke, investigadora de história do design, pede para termos um olhar analítico sobre este fascínio retro dr

Agora, Alison Clarke olha para duas décadas depois e para aquilo que era já, muito antes da época do Instagram, a “fetichização da comida”. Mas, sobretudo, interessa-lhe o olhar que hoje temos sobre esse momento. “Tem de haver um consenso colectivo de que já nos afastámos o suficiente dos anos 70” para podermos ver estas imagens — como umas velas feitas de bananas, que Alison mostra — e rirmo-nos delas.

Mas tal como um tupperware “tem de ser visto numa perspectiva mais ampla” — afinal “serviu até para lutar contra o comunismo e reforçar a família nuclear” — também devemos ter um olhar analítico sobre este fascínio retro, que passa, entre outras coisas, por programas televisivos como o britânico Back in Time for Dinner, uma “experiência etnográfica e imersiva da cultura alimentar” e que pode relacionar-se com outros fenómenos como a compra de objectos dos anos 70 e 80 no eBay ou os movimentos para “salvar sementes”. Todas elas são, de certa forma, diz Clarke, “uma tentativa de acesso a um tipo de história que temos medo de perder”. E assim, entre as manias e os medos do presente e as questões que o futuro levanta, podemos sorrir com o que um dia achámos boa ideia servir à mesa. 

O artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

Sugerir correcção
Comentar