Democracia é prazer

A aplicação de políticas sociais ditas radicais limita-se a decalcar o que de mais comum era defendido pela social-democracia há décadas. E voltam réplicas de políticas identitárias, a maior parte estruturadas nos anos 60.

Detrito, sujidade, culpa, ressentimento e reactividade. É em grande parte desta forma que a política nos nossos dias parece funcionar. E no entanto a percepção é a de que vivemos num tempo liminar, de transição, onde a política como conduta de prazer na transformação do mundo deveria estar na ordem do dia.

Claro que existe quem continue a pensar a política como acto emancipatório no sentido da construção de um horizonte melhor. Mas hoje o que temos, em larga medida, é a perpetuação das noções que nos conduziram ao presente labirinto. A globalização revela desequilíbrios, os sistemas financeiros ficam fora de controlo, ferramentas económicas revelam-se desadequadas, intensificam-se desigualdades, prevalece a ideologia tóxica da extrema competição, modelos organizacionais desintegram-se, o clima muda, a ciência e tecnologia constituem promessa de melhor futuro mas também de ameaça se não forem bem desenvolvidas, e o mundo torna-se num lugar cada vez mais instável e desigual.

No meu ciclo de vida só me recordo de um ambiente assim aquando do colapso da URSS e da queda do muro de Berlim. O bloco soviético agonizava mas ao mesmo tempo tentava criar a ideia de que nada se passava. O mesmo parece acontecer hoje na maior parte das democracias ocidentais. Há cada vez mais gente a desacreditar na capacidade de regeneração de velhos modelos – chamem-se eles capitalismo ou neoliberalismo – mas age-se como se nada fosse e faz-se força para continuar a acreditar. Ninguém espera uma revolução, até porque hoje é pouco provável que grandes transformações sejam produzidas a partir de um evento. São quando muito um processo, que já está em marcha, mas que, por enquanto, só nos levam ao passado.

O que fazem as forças conservadoras nestes tempos? Acenam com o medo e a desagregação da ordem instituída. Agarram-se à ilusão do regresso ao passado. E voltam localismos, nacionalismos, proteccionismos, fascismos, gestos ditatoriais, estados musculados, racismos, redes de interesses que se protegem, essa ilusão de que quanto menos, mais semelhantes e mais agregados formos, mais aptos estaremos para responder aos conflitos e desafios de um mundo interdependente e nómada.

Mas o principal problema nem é esse. Essa é uma narrativa repetida ao longo da história. O problema é o que fazem as forças supostamente progressistas perante este cenário? Limitam-se a reagir, sem terem nada de verdadeiramente renovado a propor e, nesse gesto, regressam também elas ao passado. A panaceia discursiva do crescimento económico como horizonte de futuro é ainda a que prevalece. A aplicação de políticas sociais ditas radicais limita-se a decalcar o que de mais comum era defendido pela social-democracia há décadas. E voltam réplicas de políticas identitárias, a maior parte estruturadas nos anos 60.

É certo que, nessas movimentações, existe resistência, resiliência e até uma energia emocional que é nova (é isso que se nota nos movimentos políticos identitários), o que é importante, no travar do desmantelamento do Estado social, por exemplo, ou na luta fragmentada por mais igualdade. Mas esse gesto é mais de reposição, ou dirigido a segmentos populacionais, do que um novo posicionamento, qualquer coisa que faça ressonância colectiva, com capacidade mobilizadora e integradora. Estamos em 2017 mas por vezes parece 1967. E o mais paradoxal é que para opor ao domínio conservador que se sente hoje, o melhor que os mais jovens vislumbram são aqueles que, como Jeremyn Corbyn ou Bernie Sanders, propõem medidas que há uns anos seriam apenas anacrónicas (redistribuição da riqueza, obrigar os mais ricos a pagar mais impostos, restauração do sistema de saúde, enfim, a ideia de que a política é para muitos e não para poucos) e que hoje, aos seus olhos, parecem óbvias. Mas não chega.

Era preciso, sem renunciar ao passado, não ficar preso a ele, indo além do tentar preservar aquilo que tem sido posto em causa, algo que nos abrisse um horizonte colectivo maior do que aquele que se vislumbra. Era preciso um pensamento novo que não tivesse receio de imaginar uma nova organização social, onde o crescimento económico seria relevante, claro, mas onde, mais importante, seria a capacidade de redistribuir a riqueza, o trabalho, o poder, o saber ou as oportunidades, ao mesmo tempo que se mobilizariam estratégias supranacionais, identificando políticas para enfrentar problemas comuns. Numa frase: seria preciso reorganizar a democracia e a vida económica a partir de baixo.  

Para isso acontecer, se a força da realidade não se interpuser, talvez seja preciso tempo e algum silêncio estruturador no meio do ruído imediato da conjuntura. Seria necessário os cidadãos voltarem a acreditar na política em si, percebendo que não estão condenados aos papel de audiência interactiva. Vivem-se tempos sombrios, mas também apaixonantes, onde perante um mundo dividido podemos render-nos à melancolia da onda conservadora, ou imaginar desafiadoramente alternativas, reclamando a democracia não só por obrigação, mas como prazer. 

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