O carácter inédito da revolução catalã

Estaremos perante a primeira revolução contra uma democracia liberal?

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Andreu Mas-Collel foi ministro da Economia do govern de Artur Mas entre 2010 e 2016. É o mais prestigiado economista catalão. E um nacionalista. Demitiu-se quando Mas negociou com a CUP a maioria parlamentar independentista. Na terça-feira, deixou um derradeiro aviso numa rádio catalã: “Nem a Generalitat, nem o povo estão em condições de tornar a independência viável. (...) O Estado é mais forte. Uma proclamação de independência será um acto simbólico (...) que frustrará muita gente.” Esperava ainda que Puigdemont arranjasse uma saída “digna e hábil”. Não discorda da independência mas da “independência unilateral” (DUI). Enfim, denunciou a ameaça de intervenção do Estado na Catalunha e apelou a “uma estratégia de resistência pacífica”.

Puigdemont falhou a saída “digna e hábil”, a convocação de eleições, que teria posto em xeque Mariano Rajoy, travando a aplicação do Artigo 155 e rompendo a frente constitucionalista — PP, PSOE, Cidadãos. Não o fez devido às fracturas internas do independentismo e por temor da pressão da rua. O campo independentista só mantém a sua coesão num clima de intensa mobilização e, se possível, com um fundo “épico”. Meia hora depois da declaração unilateral de independência (DUI) no parlament catalão, o Senado espanhol aprovava a aplicação do Artigo 155. Os dados estão lançados.

O pessimismo de Mas-Colell não é um caso isolado, é representativo. Segundo as sondagens, dias antes da DUI, quase metade dos soberanistas dizia não acreditar na viabilidade da independência. Os nacionalistas estavam divididos quanto à estratégia, como se viu na quinta-feira. A exaltação da “causa nacional” é o cimento que une um universo heteróclito, que vai dos liberais europeístas do PDeCat aos anticapitalistas e antieuropeístas da CUP, ou seja, entre inimigos ideológicos sempre em risco de confronto.

Como vai ser o 155?

Este factor favorece a dinâmica de radicalização. O 155 é encarado pelos sectores radicais como uma oportunidade para agudizar o confronto com o Estado espanhol e alargarem a sua base de apoio. O conflito é o melhor alimento do conflito. Ao pôr o Estado em questão, os independentistas forçam-no a escolher entre desistir ou usar a força, seja ela judicial ou policial.

A paixão nacionalista não se deixará comover pelo anúncio de um desastre económico. Na versão da CUP, todas as vicissitudes serão atribuídas à “sabotagem” espanhola ou ao “cerco” do capitalismo europeu.

A grande frente de embate vai ser o esforço do Estado para recuperar o controlo das instituições e do território. Vai haver resistência passiva e resistência activa. A intervenção do Estado é olhada negativamente, mesmo pela grande maioria dos que querem permanecer em Espanha. Os 200 mil funcionários vão obedecer? Vão estar sob um permanente acosso para desobedecer. Por outro lado, o Estado central tem uma débil representação no território. E resta a incógnita dos Mossos d’Esquadra.

O desfecho político será determinado noutro terreno. Quem melhor tirará as lições do 1-O? Quem vai ganhar a batalha das imagens? Os independentistas estão isolados internacionalmente e mergulhados numa sociedade partida ao meio. Têm absoluta necessidade do confronto, para impressionar os media e a comunidade internacional com “imagens chocantes da repressão”, para não falar em “mártires”. A ideia de copiar Kiev e fazer em Barcelona uma “Maidan catalã”, com milhares de manifestantes em confronto violento com a Guardia Civil, é tentadora. Circula um vídeo copiado da Ucrânia, com as mesmas palavras e o mesmo apelo. Neste caso, “Help Catalonia. Save Europe”.

Não se vão limitar à resistência passiva. Para forçar o confronto, falam em ocupar estradas, aeroportos, edifícios simbólicos ou até centrais eléctricas.

A CUP criou entretanto uma nova estrutura, de inspiração cubana, os “comités de defesa do referendo” (CDR). São um embrião de “poder popular”. Declarou ontem no parlament Carles Riera, deputado da CUP: “Vamos agora construir um contrapoder popular e institucional. Chegou a hora do povo.”

A novidade catalã

Interessa, por fim, interrogar o modelo político que está a emergir na Catalunha. Benoît Pellistrandi, um historiador francês que estuda a Espanha e tem seguido o conflito, chama atenção para o “carácter inédito da revolta catalã”. Estaremos perante “a primeira revolução contra uma democracia liberal”? Explica: “O fundamento ideológico da questão é a paixão nacionalista e identitária. Ela passa pela distorção da realidade e pela destruição do espaço público enquanto lugar de discussão razoável e racional. A democracia representativa torna-se secundária perante uma democracia ‘popular’ e ‘directa’. No discurso perante o parlamento catalão no dia 10 de Outubro, Puigdemont afirmou que havia algo acima das regras e que isso é mais democrático do que os limites que a democracia se impõe a si mesma para funcionar num Estado de direito.”

Assim, a questão catalã não é apenas catalã mas europeia. Conclui Pellistrandi: “Já não é um debate sobre o nacionalismo e as suas aspirações legítimas. É uma contestação da democracia representativa em nome de paixões políticas identitárias, de projectos de transformação social e económica radicais. E também uma agitação de todos estes ingredientes em proveito dos interesses de uma casta política que tem tudo a ganhar com a independência e tudo a perder com manutenção do statu quo.”

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