A história de Lisboa ficou à mostra num hotel de cinco estrelas

O antigo palácio dos Condes de Coculim foi transformado em hotel, que vai ter à mostra vestígios arqueológicos que vão desde o neolítico até ao século XIX.

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É uma pedra, de forma mais ou menos rectangular, com pouco mais de meio metro e com umas inscrições que, olhadas por um leigo, parecerão apenas gatafunhos. Trata-se, na verdade, de “uma peça única” que vem lançar uma nova luz sobre a presença dos fenícios no local que hoje é Lisboa. A estela funerária escrita com caracteres fenícios foi encontrada há cerca de três anos e a partir de Dezembro estará exposta num hotel do Campo das Cebolas.

“É uma descoberta extraordinária”, diz Nuno Neto, arqueólogo responsável pelas escavações no antigo Palácio dos Condes de Coculim, onde trabalhou durante quase dois anos – muito mais do que o inicialmente suposto, tal a quantidade de vestígios encontrados. De entre eles destaca-se a referida estela, do século VII a.C., “mandada esculpir por um filho para o seu pai” e que é “a manifestação mais antiga de escrita fenícia na Europa Ocidental”.

Se este facto, por si só, já fazia da estela um achado notável, ela revelou-se ainda mais original. Tanto o pai homenageado como o filho que encomendou a obra têm nomes autóctones da região de Lisboa, o que sugere que a influência fenícia foi maior do que se supunha. “Mais do que um contacto comercial” entre os povos peninsulares e os fenícios, “houve um aculturamento”, explica Nuno Neto.

A estela vai ser colocada numa vitrine do hotel da cadeia Eurostars que foi construído no antigo palácio e que tem abertura prevista para o final deste ano. Além dela, serão expostos inúmeros objectos encontrados nas escavações: anéis, cachimbos, peças cerâmicas várias. Os hóspedes vão poder vê-los diariamente, o público em geral terá acesso aos domingos à tarde, por cinco euros, de acordo com um protocolo assinado pela cadeia hoteleira e a Direcção-Geral do Património Cultural.

“Nós estamos aqui hoje, alguém vai estar depois, alguém já esteve antes”, inicia Pedro Mendes Leal para explicar como foi pensado o projecto de museologia, de que é autor. O “principal objectivo” da sua intervenção foi “trazer ao dia de hoje as várias camadas do passado”, diz. E camadas é o que por ali não falta. “A manifestação mais antiga identificada aqui é um enterramento do neolítico”, precisa Nuno Neto. Segue-se tudo o resto. “Há uma sucessão de construções umas em cima das outras. Do período do Ferro, romano republicano, romano imperial, romano tardio, período islâmico”, afirma o arqueólogo, da empresa Neoépica.

Há, claro, vestígios modernos e contemporâneos. O palácio para os condes de Coculim foi construído no século XVI e hoje sobra pouco dele. Quase tudo ruiu com o terramoto de 1755, o restante foi desaparecendo com sucessivas ocupações não-habitacionais. Sobra, por exemplo, uma parede com um arco em ogiva que está no meio do futuro restaurante. Logo adiante, a meio caminho da cozinha, foi posta a descoberto uma taberna do século XIX, que servirá de garrafeira.

Mas é a presença romana que está mais visível no edifício. Logo à entrada, à direita do que será a recepção, estão as ruínas de uma casa do século II, cujo chão em mosaico está bem preservado. “Só existem dois mosaicos intactos na cidade e este é o único que é polícromo”, explica Nuno Neto. Ao longo do piso térreo encontram-se partes da segunda muralha que os romanos construíram, entre os séculos IV e V, quando os povos bárbaros já rondavam. “A pressa de construir a muralha foi tanta que nem se deram ao trabalho de demolir as casas”, ri-se o arqueólogo, junto ao que em tempos foi a parede de uma habitação, engolida pela estrutura defensiva.

Há um amplo pedaço da velha cidade romana, do mesmo período, visível numa sala do primeiro andar, decorada com uma gravura de Lisboa antes do terramoto. Da plataforma, elevada em relação aos vestígios, vê-se um tanque-fontanário provavelmente usado por cavalos, um poço que foi utilizado pelo menos até à ocupação islâmica e parte da calçada que descia até ao rio. Aos domingos, nas tais visitas abertas ao público, será possível descer até lá abaixo.

Ao pôr este património a descoberto, o hotel “acompanha o nosso conceito e a nossa filosofia do que é o turismo”, afirma Luís Cruz, director da unidade, acrescentando que é objectivo do grupo “inserir sempre” os novos espaços “num ambiente cultural e histórico” das cidades.

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