Cem anos sem solidão

A península de Nicoya, na Costa Rica, oferece dezenas de praias de infinita beleza mas é, ao mesmo tempo, uma das zonas azuis do mundo, um lugar onde é mais fácil tornar-se centenário. Viagem a propósito do Dia Mundial da Terceira Idade, que hoje se assinala.

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Gianluca Colla/ Getty Imagens

- Abuelo!

Ele fitou a neta, esboçando um sorriso maroto, como uma criança que reconhecia ter feito algo de errado.

- Cem.

Jose Valencia Valencia, com a face sulcada de rugas, como afluentes de um rio que é uma vida, não o fazia por menos.

- Só tens 98, não te queiras fazer mais velho.

Chegara na véspera, já a noite tombara, a Sámara. Annie Fernández era capaz de jurar por todos os santos a quem todos os dias pede protecção que quase de certeza encontraria um centenário numa aldeia próxima, em Torito.

- Se não tem cem anos deve andar lá muito próximo.

Nenhuma estrela parecia faltar na reunião da abóbada celeste, como um prenúncio de mais um dia radioso pelo qual ansiava para ir ao encontro de algumas das mais belas praias do Pacífico, entre elas a de Sámara. Como eu, Mané Alvarez aceitava os prazeres da noite e revelava não menos prazer em falar-me deste lugar a esta hora tão banhado de serenidade. 

- Éramos três viajantes, com muita vontade de assistir ao pôr do sol desde um extremo da praia Sámara. Não dispúnhamos de mais do que 45 minutos para chegar ao destino. Perguntando a um ou outro local com quem nos cruzávamos, ora falavam em 50, seguindo ao longo da estrada, ora em 35 minutos, caminhando junto à costa.

Mané Alvarez, uma argentina que decidiu viver e trabalhar durante três meses na Costa Rica, gosta que os seus pés a levem pelo mundo, colonizados por um eterno desejo de aventura. 

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Sousa Ribeiro

- Caminhávamos, tranquilamente, conversando e rindo, até que um grupo de pessoas, vindo na nossa direcção, se deteve à nossa passagem. Alertaram-nos para o facto de que, para atingir o nosso destino, teríamos de atravessar um rio, com a agravante de as águas estarem por esta altura uns centímetros acima da média. E que havia cocos.

A jovem, com um cabelo curto e uns olhos brilhantes, não conteve a gargalhada.

- E eu, na minha ingenuidade, perguntei se por ali havia cocos de palmeira debaixo de água. Eles riram-se. Estavam a referir-se aos crocodilos. Em choque, titubeando, o medo instalou-se entre nós e permaneceu. Mas fomos avançando. Não tínhamos outra opção. Até que, pouco depois, ele ali estava, largo e profundo, o rio.  Começámos a atravessá-lo, com as nossas mochilas acima da cabeça. Não senti nada nos meus pés... E nunca percebi — ou não quis perceber — se realmente havia crocodilos ou se apenas nos quiseram assustar.

À nossa volta reina o silêncio. Sámara parece exercer um fascínio sobre Mané Alvarez e, de certa forma, já me sinto contagiado.

- Chegámos pouco antes do pôr do sol e, já em fato de banho, corremos para a água. O que vimos a seguir fez com que todo o esforço tivesse valido a pena. O céu vestia-se de fragmentos vermelhos e alaranjados, o sol envelhecido insinuava-se por entre as nuvens. Imersos na magnitude do oceano, as nossas retinas gravaram um dos postais mais impressionantes das nossas vidas – esse pôr-do-sol em Sámara justifica-se mesmo que implique a mais selvagem das aventuras.

Quando recolhi ao meu quarto, não sem antes observar uma vez mais as estrelas no céu limpo e escuro, bem como a luz tímida da lua, já quase me esquecera de que também estava em Nicoya para me encontrar com alguns centenários.

Zona azul

Situada na província de Guanacaste, uma das mais extensas e a mais despovoada do país, a península de Nicoya faz parte das cinco zonas azuis do mundo, escolhidas, em 2008, pelo investigador da National Geographic norte-americano Dan Buettner — as outras são a Sardenha, em Itália, Okinawa, no Japão, Loma Linda, na Califórnia, e Icária, ilha grega na parte setentrional do mar Egeu e onde, segundo a lenda, Icário caiu ao mar.

Em qualquer uma destas cinco regiões, os habitantes têm dez vezes mais possibilidades de ultrapassar os cem anos do que a média da população europeia e norte-americana e, no caso concreto de Nicoya, segundo o estudo de Dan Buettner, 13% dos residentes tem mais de 90 anos e 5% supera mesmo os cem.

O segredo para esta longevidade é, de acordo com o investigador, muito simples: vivem da agricultura tradicional e frugal, trabalham as terras sem recurso a mecanização e até idades muito avançadas e, numa fidelidade quase sem paralelo aos seus antepassados, os índios chorotega, alimentam-se de feijão, de milho e de abóbora, produtos que cozinham com papaia, batata-doce e banana, ricos em vitamina A e C. A vitamina D é garantida através de uma exposição moderada ao sol e a água local, rica em cálcio, é benéfica para os ossos e para o coração.

Ao início da manhã, sob um sol que já aquecia tudo à sua volta e enquanto reflectia sobre estes números, caminhei para a paragem, à espera de um autocarro que me levasse à praia Carrillo, promovida como uma das mais magnificentes da península e a escassos quilómetros de Sámara. A estrada corre pelo meio da vegetação, rasga pequenas povoações ao meio e deixa ver, ao fim de uns minutos, um conjunto de coqueiros e uma extensão de areia branca até perder de vista. Uma mulher, sentada numa cadeira, lê um livro e é, a esta hora, a única presença humana que me é dada a contemplar na praia Carrillo, ao passo que o silêncio apenas é quebrado pela rebentação das ondas.   

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Quando alguns turistas começam a chegar à praia em forma de crescente, sinto que está na hora de partir e, junto a uma ponte, mesmo ao lado de um mangue, tento a minha sorte à boleia. Não há muitos carros a circular, o que me dá tempo para ler um aviso numa placa alertando para o perigo face à presença de crocodilos nas águas — os “cocos” de Mané Alvarez.

Deteve-se um caixeiro-viajante, uma profissão que eu pensava já extinta, um homem de negócios mas sensível a um viandante à boleia. Deixou-me em Torito, um pueblo com menos de 30 mil almas, numa paragem de autocarro que, àquela hora, com um sol subindo e ameaçando esfarelar tudo em redor, era como uma bênção divina.

- Vive ali, daquele lado. Está a ver a carrinha, a que descarrega coisas para a escola? É mesmo ao lado, pergunte na escola se tiver problemas, não há ninguém que não saiba onde vive Jose Valencia Valencia, informa-me um idoso que espera a passagem do autocarro.

Os latidos dos cães revelam a minha presença mas no momento em que chego à casa onde supostamente vive Jose Valencia Valencia não encontro qualquer sinal de animosidade. Foi o silêncio quem me recebeu em primeiro lugar como se fosse o adro de uma igreja. Depois chegaram as vozes humanas. E aquele sorriso contagiante de Flavia Carrijo, com os seus dois anos feitos de inocência, ao colo de uma jovem com uma expressão simpática desenhada no rosto e que me inspecciona antes de se aproximar.

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Jose Valencia Valencia e a sua família Sousa Ribeiro

- Sim, é aqui que vive. Entre, sente-se, só um minuto que eu vou chamá-lo. Yanii Lao González. Muito prazer. Ele teve um período difícil, com a morte da mulher, companheira de uma vida. Foi um ano de depressão mas agora está bem. E a memória, embora recorde mais episódios ocorridos há muitos anos do que situações recentes, também está boa.

A jovem estreita-me a mão e desaparece através da moldura da porta, tapada por uma cortina de uma cor indefinida. A casa é modesta mas acolhedora. Algumas crianças olham-me com curiosidade. A família parece-me numerosa.

Sociabilidade

Se a alimentação e o contacto com a natureza são factores influenciadores da longevidade que caracteriza a população da península de Nicoya, para Dan Buettner o mais importante, o elemento verdadeiramente diferenciador, reside na sociabilidade, na coabitação entre gerações, no facto de os idosos nunca se encontrarem sós. “Sabem escutar, rir-se e apreciar o que têm”, admite o investigador no seu livro The Blue Zones – Lessons for living longer from the people who’ve lived the longest.

Jose Valencia Valencia segue os passos de Yanii Lao Gonzalez, sorri quando me avista e estende-me a mão antes de se sentar num banco rústico de madeira, ao meu lado. E é nessa altura, sorridente, talvez estando já a par da minha intenção de falar com alguns centenários da região, que anuncia a sua idade.

- Cem.

Yanii Lao González deixara-nos a sós mas não se afastara o suficente para não ouvir a conversa.

- Abuelo!

Ele ri ainda com mais vontade.

- Já não falta tudo. Mas só Deus sabe.

Acomoda-se e percebe-se que está feliz por recordar alguns dos passos que o conduziram até aos dias de hoje.

- Trabalhei a minha vida toda. Nas quintas, a cortar erva, a serrar, transportando carga aos ombros. Nunca fui à escola, aprendi a assinar com a minha mamã porque o meu papá também não sabia ler nem escrever.

Yanii Lao González pergunta-me se quero tomar um café ou beber água. Os olhos de Jose Valencia Valencia olham-me, são olhos expressivos, ainda com brilho.

- E sempre me alimentei bem, todo o tipo de carne, peixe, muito feijão, muito milho, com água de coco.

Yanii Lao González interrompe:

- É louco por tortilha de milho. E pela manhã come sempre um gallo pinto (pequeno-almoço típico), com ovo, e um café. Gosta muito de café.

Jose Valencia Valencia prossegue em busca das suas memórias.

- Quando era um jovem, ia com o meu papá à caça, à pesca, de barco ou à cana. Agora tenho mais dificuldade em caminhar mas antes percorria grandes distâncias, também porque a isso o trabalho me obrigava.

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Gianluca Colla/Getty Images

A neta volta a cortar a conversa.

- Agora gosta mais de dormir uma sesta. Essas três horas, à tarde, ninguém lhas tira.

Sentadas ao colo de José Valencia Valencia, duas meninas sorriam, uma a adorável Flavia Carrijo, ora me fitavam, ora perscrutavam o rosto do simpático velhinho que está na posse de uma das certidões de nascimento mais antigas da península de Nicoya, da província de Guanacaste, talvez mesmo de toda a Costa Rica, o país dos ticos, da gente feliz.

Rafael Obando apresenta-me, ao final da tarde de um dia em que o sol nunca se escondeu, ao seu padrinho, Estanislau Suarez, um homem com 101 anos que viveu quase toda a sua vida no lugar onde agora lhe estreito a mão, numa aldeia não muito longe do centro da cidade de Nicoya.

- Encantado.

O prazer é meu.

- Não há fome que o aguente, garante o afilhado.

É como a fome de viver, na península dos centenários, onde a convivência entre diferentes gerações afasta a solidão com a força de uma onda do Pacífico.

 

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