O estado da nação documental, afinal, é feminino

Os melhores filmes de um concurso nacional muito morno do DocLisboa são assinados por realizadoras e têm todos menos de uma hora.

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António e Catarina, de Cristina Hanes DR
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Vira Chudnenko, de Inês Oliveira DR

Dizíamos aqui há poucos dias que a Competição Portuguesa do Doclisboa 2017 andava um bocadinho por baixo (ao que alguém comentava nas redes sociais “Quantas vezes já ouvimos isso?”). Vista entretanto a totalidade dos filmes a concurso, é caso para dizer que o nível subiu, com os títulos mais interessante a ficarem para o fim. Mesmo assim, a selecção 2017, formal e esteticamente muito diversificada (quando não dispersa), está longe de ser vintage; e os melhores filmes apresentados são, curiosamente, títulos fora de formato, com durações intermédias e abordagens muito pessoais. Já falámos de Notas de Campo, de Catarina Botelho, 45 minutos que olham de modo abstracto para os anos de crise. Terá de se falar agora de António e Catarina, da romena Cristina Hanes, vencedor do concurso de curtas de Locarno em Agosto último, e de Vira Chudnenko, de Inês Oliveira, que os acasos da programação colocam em programa conjunto (última passagem este sábado, às 14h, no Cinema São Jorge).

Antes disso: nos formatos mais longos, já falámos aqui do título que nos pareceu mais interessante, O Canto do Ossobó de Silas Tiny, cujas fraquezas são mais do que compensadas pelo seu olhar pessoal sobre um capítulo esquecido do colonialismo português. Uma palavra para BARULHO, ECLIPSE (assim mesmo, em maiúsculas), estreia na longa de Ico Costa, cuja curta Nyo Vweta Nafta tem feito um excelente percurso internacional; é uma variação formalmente muitíssimo bem trabalhada sobre o filme-concerto, registando com garra uma actuação do colectivo de música improvisada Rahu; mas a inteligência do tratamento não invalida que seja “apenas” um filme-concerto. Outra ainda para a quase-longa (57 minutos) À Tarde, de Pedro Florêncio, objecto de landscape cinema que regista em longos planos fixos momentos banais de uma tarde caseira; fica a sensação de que o filme teria ganhado com mais atenção ao conteúdo (à imagem dos belos planos de início e de fim) e menos confiança cega no dispositivo.

Os desafios, então. António e Catarina, 40 minutos de duração, é um retrato esquivo, delicado, de uma vida nas margens do mundo, resgatada por um encontro casual com uma cineasta. Augusto Martinho e Cristina Hanes criam um espaço de entendimento, uma amizade que se constrói fora do mundo real ao longo de vários meses durante os quais a câmara da realizadora é uma testemunha secreta e peculiarmente desarmante. Vira Chudnenko, 31 minutos, inspira-se num caso real de 2007 sobre uma imigrante ucraniana morta por quatro cães Rottweiler, contado por Inês Oliveira de um modo em que ressoa a “teoria da paisagem” de Masao Adachi: o filme vagueia entre os locais onde tudo aconteceu e um estúdio de som onde uma locutora grava em russo os relatos de duas testemunhas do acontecimento, envolvendo lentamente o espectador no horror da situação. De passagem, este óptimo filme marca um regresso à boa forma de uma cineasta que sentíamos perdida nas suas duas longas. A ver, agora, o que o júri escolherá esta noite.  

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