Uma parceria entre o público e o privado

Um balanço possível da edição 2017 do Doclisboa, em que o júri optou, num ano em que o grosso da proposta estava do lado do “público”, por premiar filmes mais “íntimos”.

“Um festival de vasos comunicantes”, dizia uma das directoras, Cíntia Gil, no arranque deste 15º Doclisboa. Não é, dizemos nós, um exclusivo desta edição, foi sempre assim ao longo dos 15 anos de existência do festival lisboeta, com os filmes a falarem uns aos outros atravessando fronteiras de secções e lógicas de selecção. Antes do festival, então, a direcção do certame sentia dois rumos nas escolhas 2017: de um lado o íntimo - filmes sobre pessoas, identidades e histórias de vida - e do outro o público - reflexões do mundo conturbado em que vivemos.

Não raras vezes, essas duas esferas cruzaram-se de maneiras improváveis em muitos dos melhores filmes que vimos nesta programação. Como na persistência da discriminação e do racismo na América contemporânea, explorada a partir de pontos de vista pessoais em Did You Wonder who Fired the Gun?, de Travis Wilkerson (na paralela Riscos), baseado na sua própria história familiar de um bisavô que matou um negro a tiro em 1946, e Purge This Land, de Lee Ann Schmitt (Competição), que parte da história verídica do abolicionista John Brown para construir uma teia de reflexões sobre este assunto que continua a envenenar a América. O próprio filme escolhido para a sessão de encerramento, o espantoso Era uma Vez Brasília de Adirley Queirós, representa esse cruzamento da “pequena história” com a “grande História”, entre o íntimo e o público, ao encenar os subúrbios de Brasília como uma enorme prisão a céu aberto de onde a fuga apenas é possível pela imaginação, e o sistema político tradicional como um pântano de corrupções para quem os mais fracos são carne para canhão.

É uma visão do Brasil que se prolongou a um dos mais duros títulos da Competição Internacional, Martírio de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida, sobre a luta dos índios Guarani-Kaiowa para reconquistar os seus terrenos ancestrais, verdadeiro “cinema de urgência” que faz ferver o sangue do espectador, épico de sofrimento e dignidade que chega a ser insustentável. Pela sua dimensão humana e pela procura da reconquista de uma identidade própria pelo meio de um mundo que se desintegra e se reconstrói, Martírio faz a ponte com o épico mosaico de Nicolas Klotz e Élisabeth Perceval L’héroïque lande (Competição), sobre os refugiados no limbo de Calais, que por seu lado vai ligar ao vazio do limbo modernista em que se encontra o viajante retido de Tripoli Cancelled de Naeem Mohaiemen (Competição).

Tripoli Cancelled era um filme de um filho inspirado pela história do seu próprio pai e uma filme em busca de identidade – e por aí vamos dar a Chjami è Rispondi (Competição Internacional), tocante mas algo disforme exercício de meta-auto-biografia onde o francês Axel Salvatori-Sinz tenta reconstruir uma relação com o seu pai. Essa linhagem de filmes sobre a família e a identidade, voltamos a Travis Wilkerson e vamos também dar a Saule Marceau de Juliette Achard (Competição), onde a realizadora filma o seu irmão Clément, ou ao vencedor Milla de Valérie Massadian (Competição), nas fronteiras da ficção, sobre uma miúda que aprende a ser mulher e mãe.

O Doc 2017 manteve elevada a fasquia desses “vasos comunicantes” que põem o cinema e os cineastas a pensarem no cinema não como algo de isolado do mundo em que existe, mas como algo intrinsecamente enraizado no tempo e no espaço que o rodeia. Curiosamente, o júri optou, num ano em que o grosso da proposta estava claramente do lado do “público”, por premiar filmes mais “íntimos” - mas fê-lo premiando os melhores filmes “íntimos” que estiveram a concurso, afirmando que, afinal, público e privado são apenas dois lados de um mesmo cinema, real e do real.

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