Parque jurássico, perdão, judicial

"O Conselho Superior de Magistratura preparava-se para nada fazer até haver um clamor público sobre este caso".

Chamou a atenção a muita gente que um juiz da Relação do Porto tenha citado a Bíblia para atenuar um crime de agressão premeditada de um ex-marido sobre a ex-mulher sob o pretexto de antes ter havido adultério desta, "gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem".

A mim chamou a atenção que ele tenha mencionado o Código Penal de 1886, introduzindo-o com a frase "ainda não foi há muito tempo".

Vale a pena citar por inteiro: "Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.0) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse".

Podem considerar isto uma reação corporativa, mas cá vai: com exceção dos historiadores, nenhuma outra profissão precisa de citar leis, usos e costumes de 1886 começando pelas palavras "ainda não há muito tempo". Pode alegar-se que o meritíssimo juiz Neto de Moura, pois esse é o seu nome, disse que o Código Penal de 1886 era coisa de "há pouco tempo" porque tinha acabado de citar a Bíblia, que tem uns milhares de anos a mais. Pois é. Se tivesse citado antes o Código de Hamurábi (Mesopotâmia, 1775 antes de Cristo) o Código Penal de 1886 era ali mesmo há um bocadinho.

Mas ao utilizar o já abolido Código Penal de 1886 como fonte de direito o juiz Neto de Moura não revela apenas em que época jurídica foi formado — ou, perdão, fossilizado. O verdadeiro problema é que entre 1886 e hoje houve três mudanças de regime politico, quatro constituições e várias revisões constitucionais, duas guerras mundiais e o fim de vários impérios, uma declaração universal de direitos humanos, uma convenção europeia de direitos humanos e uma carta de direitos fundamentais da UE, pelo menos. Todas as fontes de direito em vigor e que Neto de Moura não cita proíbem a discriminação com base na diferença sexual ou de género. Pessoalmente, Neto de Moura pode viver no tempo em que o adultério da mulher é, como ele descreve, "deslealdade e imoralidade sexual" (só o da mulher, note-se: nesse mesmo tempo o adultério do homem era razão para bravata e gabarolice). Profissionalmente, Neto de Moura não o pode fazer, porque a lei que lhe compete aplicar já não vive nesse tempo.

É aqui que o problema deixa de ser de um juiz só e passa a ser de todo o sistema judicial. É que há em Portugal dois tipos de realidades profissionais distintas. Uma é a daquelas áreas de actividade que aceitam de boa vontade a comparação e os contributos externos. Exemplo: o serviço nacional de saúde, onde não é impossível ouvirmos uma enfermeira de uma unidade de saúde familiar a dar informação sobre recomendações da Organização Mundial de Saúde. Aí não temos problema em reconhecer quando estamos mal, a fazer por melhorar, e podemos acabar tornando-nos nos melhores do mundo. E depois há aquelas corporações onde todos são "doutos colegas", onde ninguém aponta erros a ninguém com medo de abespinhar a hierarquia e onde a incompetência de uns é ocultada pela cumplicidade de outros. Assim é o nosso sistema de justiça, e por isso passamos pela vergonha sucessiva de nos vermos condenados sistematicamente pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. É evidente que o caso de Neto de Moura cabe direitinho nesta descrição, que os doutos colegas do meretíssimo juiz sabem há décadas que ele é jurássico e o tratam com a mesma tolerância com que ele trata agressores de mulheres, e que o Conselho Superior de Magistratura se preparava para nada fazer até haver um clamor público sobre este caso.

Ora, não é assim que as coisas deveriam passar-se. A independência do judiciário traz consigo um dever de auto-correção que o Conselho Superior de Magistratura tem de liderar a partir das suas competências disciplinares e de formação. Caso contrário voltamos aos tempos em que os corregedores e juizes-de-fora que não agradassem ao povo eram cobertos de imundícies e expostos fora das muralhas das cidades. Foi assim, como dizer?, "há não muito tempo". Mas nós, ao contrário de Neto de Moura, avançámos.

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