Uma medalha para Corker e Flake (e a guerra mal começou)

Os senadores Bob Corker e Jeff Flake iniciaram uma revolução contra Donald Trump? É cedo para saber. Mas são os primeiros a "virar" e têm poder. Para já, estão a fazer o que é preciso — dizer a verdade sobre o Presidente. O que não é pouco.

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No dia 27 de Setembro passei a ler o Tennessean, o principal jornal de Nashville, um mundo novo onde descobri, numa manchete, que Kenny Rogers e Dolly Parton “pousaram os microfones em última performance”. Vou lá por causa do senador Bob Corker.

Ao contrário do que é hábito, Corker tornou-se uma estrela mundial por boas razões. É um respeitado veterano do Partido Republicano, presidente da influente Comissão dos Negócios Estrangeiros do Senado, eleito por um estado conservador que deu a Donald Trump 60% dos votos em Novembro, que apoiou Trump na campanha e até o ajudou na Carolina do Norte, o estado ao lado, onde Trump ganhou contra Hillary Clinton com uma pequena margem, e "foi falado" para vice e para Secretário de Estado. Bob Corker tinha reservas em relação a Trump, e expressou algumas, mas não era um republicano da oposição. Até Setembro, votou alinhado com a administração. Apesar de tudo e apesar do Irão e da Coreia do Norte.

Foi com este histórico que agora, aos 65 anos, partiu a loiça. O clique deu-se há um mês, quando anunciou que não vai recandidatar-se nas eleições de 2018. Desde então, as suas críticas a Trump são de uma franqueza e ferocidade desconcertantes. Começou por dizer que a Casa Branca é hoje uma "creche para adultos" e que Trump é um "Presidente perigoso" que pode dar início a uma III Guerra Mundial, e acabou a dizer que o Presidente "mente todos os dias e todos sabem disso".

Será Corker o tal “senador tímido” que, mais tarde ou mais cedo, iria sair do seu canto sossegado, dizer “basta” e iniciar um processo de impeachment, como escreveu há um ano um conselheiro de Condoleezza Rice? É cedo para dizer. Mas Corker pode ser mais do que incómodo. Pode fazer inquéritos parlamentares e ter iniciativas legislativas que ponham Trump em xeque. Tem um exemplo inspirador: o senador William Fulbright, líder desta mesma comissão nos 1960, que, sendo democrata, usou todas as ferramentas que tinha para se opor à política de Lyndon Johnson, um Presidente do mesmo partido, em relação à guerra do Vietname.

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Os senadores Jeff Flake e Bob Corker Joshua Roberts/Reuters

É isso, justamente, que Corker vai fazer. Começa já esta segunda-feira uma série de audições na Comissão dos Negócios Estrangeiros sobre os poderes da Administração na condução da política externa dos EUA e há expectativa de que se discuta a tristemente célebre lei da Autorização do Uso de Força Militar que — três dias — a seguir ao 11 de Setembro de 2001 passou um cheque em branco ao Presidente, permitindo ao executivo iniciar uma guerra sem debate no Congresso. Os primeiros a serem ouvidos são Rex Tillerson e Jim Mattis, os secretários de Estado e da Defesa que Corker descreveu como os homens que passam o dia a "tentar conter Trump". A estratégia é clara. Corker vai usar o palco solene do Senado para dizer o que tem dito em corredores e entrevistas: o Presidente é "perigoso", "irresponsável", "mentiroso" e "incompetente" e a sua conduta está a "rebaixar os Estados Unidos" a níveis "inimagináveis".

Isto pode significar que, ao cerco judicial que impediu Trump de mudar a política de imigração, à resistência dos estados que não aplicam algumas políticas do Governo (como as alterações climáticas), e à própria força da democracia americana, que entupiu os emails e telefones dos senadores exigindo que votassem contra a destruição do Obamacare, juntar-se-ia agora um novo cerco, o da política externa.

Foi no Tennessean que li o aviso de Corker em relação aos próximos meses no Senado: “Vai ser um período muito duro.”

Liberto de Trump, Corker não tem nada a perder. Se tiver sucesso, retira poder a Trump e devolve algum controlo da política externa ao poder legislativo. E, pelo caminho, pode abrir caminho a que outros republicanos decidam falar. No mínimo, expor as fragilidades de Trump no Senado vai proteger a investigação de Robert Mueller ao "affair russo", o que é crucial.

"Não vou ser cúmplice"

Como as más, as boas notícias nunca vêm sós. Jeff Flake, um dos republicanos mais conservadores do Senado americano, acaba de anunciar que também não se recandidatará. Explicou porquê no Senado. “Há momentos em que temos de arriscar as nossas carreiras em nome dos nossos princípios. Este é um deles. Estou aqui hoje com uma dose considerável de mágoa. Mágoa por causa do estado da nossa desunião, mágoa por causa do desarranjo e da disfuncionalidade da nossa política, mágoa por causa da indignidade do nosso debate público, mágoa por causa da grosseria da nossa liderança, mágoa por a nossa autoridade moral estar a ser comprometida e mágoa com a nossa cumplicidade — de todos nós — neste perigoso estado de coisas. Chegou o momento de pôr fim à nossa cumplicidade com o inaceitável.”

Mais do que para Trump, Flake falou para os seus colegas republicanos do Senado. E fez um claro apelo à rebelião. Não podemos aceitar a Administração Trump como o “novo normal”, disse. “Não podemos cair na ideia de que isto é simplesmente como as coisas são agora”, que é “just politics as usual”. “Sem medo das consequências, e sem pensar nas regras do que é politicamente seguro, temos de parar de fazer de conta que a degradação da nossa política e a conduta do nosso governo são normais. Não são normais.” Quando o Presidente se apresenta como alguém que “diz as coisas como elas são” o que ele faz, na verdade, é dizer coisas “irresponsáveis, infames e indignas”, continuou. “Dizemos muitas vezes que ‘as crianças estão a ver’. Bem, estão mesmo. E o que é que vamos fazer em relação a isso? Quando a próxima geração nos perguntar: ‘Porque é que não fizeram nada? Porque é que não falaram?’, o que lhes vamos dizer? Senhor Presidente, estou aqui hoje para dizer: basta.” O discurso tem 17 minutos (ou 14 mil caracteres), mas vale a pena ouvir ou ler na íntegra.

Jeff Flake, que também faz parte da Comissão dos Negócios Estrangeiros, também perguntou se os republicanos aceitariam um Presidente como Trump se “esse comportamento viesse do lado dos democratas”. E deu a resposta: "Quando ficamos calados sabemos que o silêncio é a escolha errada.” Não falar hoje “é uma traição moral ao povo americano” e "o silêncio pode ser cumplicidade — eu tenho que dar respostas aos meus filhos e aos meus netos e, por isso, Sr. Presidente, não vou ser cúmplice.” Foi já no fim do discurso que Flake anunciou que se “liberta das considerações polítícas” que iriam “comprometer demasiados princípios” e não se recandidata em Novembro. Deixa o Senado em Janeiro de 2019. Flake acredita que o “feitiço” (a expressão é sua) vai acabar por quebrar-se. "Voltaremos a ser nós próprios — quanto mais cedo, melhor”.

Os cínicos dirão que Corke e Flake podiam ter tentado travar Trump enquanto ainda era tempo. Ou que saem apenas porque sabem que vão perder. Eu dou graças ao digital, que me permitiu ler e ver tudo na íntegra a nove mil quilómetros de distância e ficar com esperança de que este seja o princípio do puxar de tapete que fará Donald Trump cair. E que, pelo menos, mais republicanos comecem a dizer o que pensam e a agir de forma consequente.

No Verão, Trump escreveu um tweet que dizia: “Bom ver que o Dr. Ward vai concorrer contra Flake. Jeff Flake é FRACO em relação às fronteiras e ao crime e é irrelevante no Senado. Ele é tóxico!”.

Nada vai mudar da noite para o dia. Mas a apostar neste instante, diria que irrelevantes estes dois senadores não vão ser. Já estão do "lado certo da história" e a guerra mal começou.

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