A geração zombie de Harmony Korine

Foi há 20 anos que surpreendeu o mundo com o filme Gummo. Esta sexta-feira, o DocLisboa recorda-o, ao mesmo tempo que no Pompidou, em Paris, é alvo de uma retrospectiva que nos devolve as suas diversas facetas, do cinema à pintura, sempre com figuras disfuncionais no horizonte.

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Gummo (1997), o primeiro filme de Harmony Korine, celebra 20 anos, com o festival DocLisboa a assinalar a data esta sexta-feira, às 21h30, na Culturgest dr
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Harmony Korine dr
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Imagem do filme Gummo dr
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Exposição no Pompidou dr
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Exposição no Pompidou dr
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Exposição no Pompidou dr

Informados mas sem conhecimento. Zangados mas sem perceberem porquê. Rebeldes mas sem posicionamento político. Pouco articulados mas expressivos. Vidas solitárias sem objectivo que se decidem à volta de jogos de computador, lugares de comida rápida, sexo, drogas e música.

Zombies. Adolescentes ou figuras bizarras que parecem viver num mundo à parte, projectando existências grotescas esvaziadas de sentido. Ao longo dos anos, o americano Harmony Korine foi representando-os, colocando-se ao seu lado, sem julgamentos, devolvendo-nos algumas das facetas mais sombrias do sonho americano. No seu universo, tudo parece virado do avesso, como no dia seguinte à expulsão do paraíso. Dir-se-ia que se foi apoderando dos códigos da cultura dominante para melhor os pulverizar.

Era assim no seu primeiro filme, Gummo (1997), que agora celebra 20 anos, com o festival DocLisboa a assinalar a data esta sexta-feira, às 21h30, na Culturgest, com uma sessão única seguida de festa no espaço da Barraca. E não é assim tão diferente em Spring Breakers (2013), o seu último filme, fantasia sensorial, mas bem real, de mar, sexo, armas, sol, drogas e rap, que nos restitui uma américa tão enferma quanto hedonista.

Pelo meio, altos e baixos. Aos 45 anos, Harmony Korine já teve muitas vidas. Já esteve no topo, já deixou de estar, e agora regressa. Quer dizer, até certo ponto. Não é só em Lisboa que é alvo de atenção. Em Paris, o Centro Pompidou inaugurou no passado dia 6 de Outubro uma retrospectiva da sua obra enquanto realizador de longas, médias e curtas-metragens, de videoclipes (dos Sonic Youth a Cat Power) e anúncios de publicidade, mas também como poeta, fotógrafo ou artista plástico. Em simultâneo, a Galerie du Jour Agnès B. expõe algumas das suas últimas pinturas.

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Por vezes pinta motivos geométricos – espirais, círculos, explosões – num jogo de atmosferas, tonalidades e contrastes que, diz ele, é também que lhe interessa conceber no cinema.
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Em Paris, no Pompidou, está patente uma retrospectiva da sua obra, incluindo a sua faceta como artista visual

Para uns, constituiu um dos derradeiros exemplos de uma ideia de cultura visual alternativa vinda dos EUA, embora também exista quem o ache frívolo, não perdoando que ao mesmo tempo realize videoclipes para Rihanna ou filmes publicitários para grandes marcas.

Provocador, sempre assumiu os paradoxos da sua actividade, começando por dar nas vistas em Kids (1994), o filme-choque de estreia de Larry Clark, de cujo guião foi responsável, tinha então 19 anos. Na sua primeira longa-metragem, Gummo (1997), retratava a mesma geração, mas em vez de Nova Iorque, mergulhávamos em Xenia, uma cidade do interior, onde vagueavam sem rumo, deixados à sua sorte, miúdos abusados pelo pai, disparando sobre gatos, cheirando cola ou oferecendo os serviços sexuais de uma irmã. Muitas das cenas parecem vídeos do YouTube, juntando vários formatos (vídeo, 16mm, super8, polaroids) que exprimem com intenso lirismo e poesia o mundo a desmoronar-se.

Passados 20 anos, Gummo continua um objecto inclassificável, algures entre a ficção, o documentário, a instalação vídeo ou a cultura da Internet mais indomesticável, tendo acabado por tornar-se numa obra de culto. O seu filme seguinte, Julien Donkey-Boy (1999), foi realizado segundo os preceitos do Dogma de Lars Von Trier, com Werner Herzog como actor, seguindo-se um fracasso de bilheteira, Mister Lonely (2007), um óptimo filme falhado sobre um sósia de Michael Jackson que se apaixonava por uma sósia de Marilyn Monroe, antes de se descobrir a si próprio. O filme-documentário Trash Humpers (2009) pegava outra vez em personagens singulares, punks geriátricos com gosto pelo lixo; com Spring Breakers (2013) teria o seu maior sucesso, naquele que constituiu mais um exemplo da capacidade de transformar um objecto pop num momento de grande espanto.

Lirismo e disfunção

Neste quadro, não é difícil perceber que Harmony Korine é acima de tudo cineasta. Mas é igualmente skater, actor, escritor, coleccionador de arte e, nos últimos anos, cada vez mais, artista visual. Por vezes pinta grandes motivos geométricos – espirais, círculos, explosões – como os que se encontram na galeria Agnès B., num jogo de atmosferas, tonalidades e contrastes que, diz ele, é o mesmo que lhe interessa conceber no cinema.  

Numa entrevista recente dizia mesmo que para ele está tudo interligado, e que todos os seus objectos acabam por provir da mesma ideia de “deixar os impulsos falarem de forma recreativa e sem receio de criar o caos”. O objectivo, afirma, é gerar junto do espectador um ambiente palpável, uma espécie de impressão física, onde a arte pop e a cultura psicadélica dos anos 70 se conectam. Um dispositivo sensorial que se encontra também nas fotografias, nos textos e nas pinturas dispostas no Pompidou, galeria de visões de repulsa, figuras fantasmagóricas, diabos ou criaturas antropomórficas.

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Spring Breakers (2013), o seu último filme, fantasia sensorial mas bem real de mar, sexo, armas, sol, drogas e rap

Tanto os seus filmes como as suas pinturas procuram a singularidade, mas nos últimos anos Harmony Korine acabaria por se dedicar mais às segundas. Os filmes são um processo colaborativo onde se despende muita energia para se conseguir o que se deseja. A pintura é mais solitária e espontânea. Às vezes tem uma ideia e transforma-a em poema, em pintura ou num filme. “Tenho prazer em fazer todas essas coisas e gosto de escolher”, diz.  

Há 20 anos, as diversas subculturas que foi revelando estavam nas margens. Constituíam, para ele, em simultâneo, lugares de marginalização ou de apática revolta. Era um tempo em que os lugares de poder se identificavam com facilidade. Sabia-se onde estava o sistema dominante. “Hoje é tudo mais fragmentado e globalizado”, assevera. “Já não existem margens ou centros. A Internet veio acelerar tudo e a única lei parece ser a rapidez.” Em parte, por isso, as suas pinturas são texturais, vibratórias e alucinantes, como se quisessem provocar um efeito hipnótico que acaba por evocar também a energia de alguns dos seus filmes.  

Ele, que cresceu em Nashville e despontou em Nova Iorque, vive actualmente em Miami, não muito longe dos locais onde filmou Spring Breakers, e onde realizará o seu próximo filme, The Beach Bum, uma comédia com o actor Matthew McConaughey ou o rapper Snoop Doog. Ainda não se sabe muito sobre ele, mas não custa acreditar que terá momentos electrizantes de puro lirismo e personagens disfuncionais. Como acontecia em Gummo. Como acontece em Spring Breakers. E como é perceptível também em todos os seus trabalhos como artista visual.  

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