Marcelo sabia de tudo. Governo ficou chocado com o Presidente

Primeiro-ministro informou Marcelo sobre os calendários para a apresentação de medidas e até para a saída da ministra da Administração Interna.

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Daniel Rocha

Foi com surpresa e até com choque que foi recebida pelo Governo a declaração do Presidente da República na terça-feira sobre a resposta a dar aos incêndios. Não só pelo tom da intervenção, mas porque o chefe de Estado estava a par de tudo o que estava a ser preparado, na reacção às tragédias deste Verão – e Marcelo nunca terá transmitido qualquer desacordo desses passos e o calendário a seguir, garantiu ao PÚBLICO uma fonte do executivo. Não até àquela intervenção ao país, em que ficou registado o ultimato ao Governo.

“Estávamos à espera de um discurso duro, mas ficámos chocados”, conta o mesmo responsável. No executivo, o sentimento é o de que o Presidente mudou a actuação entre as conversas que foi tendo ao longo dos dias com o primeiro-ministro e a reacção que teve em directo dos paços do concelho de Oliveira do Hospital. 

Do lado de São Bento garante-se que Marcelo estava informado não só sobre as medidas que iriam ser tomadas no Conselho de Ministros extraordinário, algumas delas em preparação nos últimos meses e até com a colaboração activa do Presidente, como sobre o calendário que iria ser seguido. E Marcelo terá assentido: “As coisas estavam combinadas com o Presidente da República, nomeadamente o momento da saída da ministra Constança Urbano de Sousa.”

A demissão da ministra da Administração Interna era um assunto que estava em cima da mesa, mesmo antes da tragédia de 15 de Outubro – aliás, a própria contou na carta de demissão que já tinha pedido para sair por duas vezes. Apesar da forte pressão, Costa defendeu que a substituição da ministra só deveria acontecer depois do Conselho de Ministros, para que fosse Constança a apresentar as medidas que preparou. “Estava tudo acordado. O Presidente sabia da saída da ministra”, reforçam ao PÚBLICO.

Contudo, Marcelo acelerou. O timing e o tom do Presidente, naquele discurso, deixaram o Governo “chocado”. Na intervenção que marca a viragem na relação entre os dois, Marcelo disse a Costa que estaria atento e “exerceria todos os poderes”, exigindo ao Governo um “novo ciclo”. E que o Governo teria de “ponderar o quê, quem, como e quando serve este ciclo”. Além disso, exigia que o Governo retirasse “todas, mas mesmo todas, as consequências da tragédia de Pedrógão Grande”.

O Presidente, para já, prefere chutar para canto. Ainda esta quarta-feira, os jornalistas perguntaram a Marcelo se alguma coisa tinha mudado na relação como primeiro-ministro. A resposta foi seca: “Não vou comentar realidades que não interessam aos portugueses. O que interessa aos portugueses são medidas e a sua concretização.”

A concretização, sabia Marcelo, estava a ser preparada para apresentar no Conselho de Ministros no sábado seguinte. Mas Costa foi obrigado a mostrar parte delas logo no dia seguinte, no debate quinzenal (vistas ali como cedências ao discurso do chefe de Estado): desde o reforço de verbas no Orçamento para 2018 à demissão da ministra ou mesmo as indemnizações às vítimas. Aliás, no que toca às indemnizações, Marcelo pressionara o Governo para fazer uma avaliação “de forma rápida”, de modo a indemnizar as vítimas de Pedrógão no dia anterior aos incêndios de Outubro. O mecanismo extrajudicial previsto já vinha a ser preparado – com Belém informado – e estava agendada a reunião com a Associação de Familiares das Vítimas para quarta-feira, no dia em que foi apresentada esta medida. 

Certo é que a declaração do chefe de Estado marca uma viragem na relação com o Governo e isso terá consequências para o tempo que falta dos mandatos de ambos. Marcelo não só descolou da atitude de António Costa, no tom e no conteúdo, como acabou por contribuir para fragilizar o Governo na pior altura – depois de uma tragédia. Isso mesmo foi notado esta semana pelo porta-voz do PS, João Galamba, que dizia que Marcelo “aproveitou o momento infeliz do Governo”. Se Costa e Marcelo se conhecem há muitos anos e a relação se desenvolverá com base em algum pragmatismo, no Governo cresceu um sentimento de desconfiança.

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