A Cunha numa loja de “souvenirs”

Se a Cunha vai acabar de vez, não sei. Mas temo que sim. Não me move qualquer tipo de nostalgia serôdia, nem me parece que isso faça sentido. Lamento, isso sim, que a História, com “H” grande, esteja a ser, aos poucos, apagada

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Mário Barros

A Cunha foi o meu espaço de eleição durante anos a fio. Era lá que, à tarde, eu e os meus compinchas de escola secundária íamos lanchar, para pôr a conversa em dia — como se não estivesse, depois de uma manhã inteira de cumplicidades na carteira da sala de aula e nos intervalos… — e desenhar os planos de uma vida profissional ainda longe no futuro, mas muito perto nos sonhos. Saíamos do velhinho (hoje, ainda mais) Alexandre Herculano, ali para os lados do Bonfim, descíamos até à Rua de Fernandes Tomás e depois pela Rua da Alegria, para virarmos na Rua da Firmeza, uns pozinhos antes de chegarmos à Cunha.

Regressei lá há cerca de um mês e meio. A sala já não me pareceu o que era, porque se me apresentou mais vazia do que a minha memória, longa de quase 30 anos, me desenhava. Os funcionários, esses, pareceram-me os mesmos dessa época. Com a simpatia do costume, mas com o peso dos anos a vergarem-lhe um pouco os ombros e o olhar. Não estava muita gente na sala onde me sentei para jantar. Seriam umas três ou quatro mesas a solicitar-lhes a atenção; não mais de duas famílias e um casal de idosos.

No momento em que escrevo estas linhas, sei apenas que a Cunha estará perto de deixar de ser aquele sítio especial, de memórias boas, de companheirismos juvenis, despreocupados, como têm de ser. Diz a história que a Cunha foi inaugurada em 31 de Março de 1906, ainda como padaria em Santa Catarina, perto da Capela das Almas. Várias peripécias depois, mudou-se para o sítio onde está agora, lá no alto da Rua de Sá da Bandeira. Uma espécie de último reduto de quem pode contar com a Cunha para um snack até às duas da manhã.

A confirmar-se a ordem de despejo, a notícia mais não é do que a consequência dos tempos, dos novos tempos que o Porto está a viver. Os velhos locais de culto perdem terreno para as “taskas”, para os “eat and drink” e para certas bizarrias cujo sucesso não consigo entender.

Os turistas mandam na cidade e os “indígenas” são cada vez mais atirados para fora do centro, quanto mais não seja pelos preços proibitivos de um simples café. Ainda este domingo, sentei-me numa banal esplanada de rua para descansar as pernas e o espírito ali para os lados da Ponte de D. Luiz I e arregalei os olhos quando me puseram a conta à frente. Apeteceu-me responder com a música dos Trabalhadores do Comércio e chamar mesmo a polícia…

Não quero aqui fazer o discurso do Velho do Restelo e agoirar o futuro de uma cidade que se quer cosmopolita e de braços abertos para os turistas. Mas o Porto, o velho Porto que é o chamariz de espanhóis, franceses, alemães, japoneses, sul-coreanos, polacos e de sei lá mais quantas nacionalidades, está a desaparecer. Paulatina e silenciosamente. Caro leitor: basta dar um pulo à Ribeira para se perceber que começam já a transformar-se em resquícios os pregões e impropérios que fazem da Ribeira uma das zonas mais características do Porto.

Se a Cunha vai acabar de vez, não sei. Mas temo que sim. Não me move qualquer tipo de nostalgia serôdia, nem me parece que isso faça sentido. Lamento, isso sim, que a História, com “H” grande, esteja a ser, aos poucos, apagada. Começa a ser difícil encontrar um cantinho na cidade onde ainda se coma uma boa francesinha, ou umas lautas tripas à moda do Porto. Agora, é tudo “very tipical”, as ementas estão escritas em “estrangeiro”, há tripas todos os dias (era à quinta-feira) e sou atendido com um “hello”. Apetece-me responder “hello, carago!”.

Se a Cunha fechar, é mais um pedaço da cidade que vai embora. Mais um pouco de Porto que se apaga da memória de várias gerações. Pelo caminho que “isto” está a tomar, dentro de muitos poucos anos serão as lojas de "souvenirs" a contar a História da cidade.

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