Linhas cruzadas: a Catalunha, o Brexit, a Escócia e Gibraltar

Se a independência da Catalunha e o Brexit se cruzarem explosivamente em 2019, a União poderá ser arrastada para uma imparável espiral de desagregação.

1. Pela primeira vez na sua história, o futuro da União Europeia depende mais de conflitos que envolvem fortíssimos interesses nacionais do que da solidez das relações franco-alemãs, ou da gestão de uma crise na zona euro. Nesta altura, a Catalunha é o foco das atenções: quer tornar-se independente e membro da União Europeia, mas tem a total oposição do Estado espanhol e não tem qualquer apoio oficial nos Estados-membros. Não obteve, também, a desejada mediação internacional do conflito pela União Europeia. Ao mesmo tempo, a Espanha quer recuperar a soberania sobre Gibraltar aproveitando a saída britânica da União. O Reino Unido, por sua vez, procura readquirir a soberania transferida para a União Europeia e afirmar-se globalmente. A Escócia, até agora parte integrante do Estado britânico, pretende ficar na União Europeia e ser independente. Na Irlanda do Norte, a saída da União ameaça reabrir o conflito entre os unionistas e os nacionalistas irlandeses.

2. Estas pretensões antagónicas, que se cruzam e interligam entre si, dão origem a um complexo puzzle político entre a Espanha e o Reino Unido. Permitem, ainda, um jogo de alianças entre a Escócia a Catalunha e outros potenciais separatismos (Flandres, Córsega, Norte de Itália, etc.), com múltiplas implicações para a União Europeia. Tudo isto coloca uma extraordinária pressão sobre esta. Os acontecimentos de 2017 — com as negociações do Brexit marcadas pela discórdia e a crise de secessão da Catalunha —, não deixam dúvidas quanto a isso. É uma ironia histórica que, na actual União Europeia, imbuída de ideais pós-nacionais, se esteja a viver uma encruzilhada que faz lembrar a Europa de inícios do século XVIII. Tal como no passado, as lutas de poder e a vontade de afirmação nacional podem desencadear uma cadeia de acontecimentos revolucionários do mapa europeu. Hoje, se acontecer algo similar, a principal vítima não serão os impérios, que já não existem, mas alguns Estados e a própria União Europeia.

3. A Espanha e o Reino Unido são dois dos mais antigos e importantes Estados europeus. O início do século XVIII foi decisivo para ambos, mas por razões inversas. Para os britânicos, os Actos da União entre a Inglaterra e a Escócia (1707) marcaram o início da actual configuração do Reino Unido como Estado. Tornou-se um caso de extraordinário sucesso, europeu e mundial, para uma relativamente pequena ilha e população. Foi também por essa época que os britânicos entraram na posse de Gibraltar, pelo Tratado de Utrech (1713), que pôs fim à guerra da sucessão de Espanha. (O mesmo aconteceu com a ilha de Menorca, devolvida em 1802, durante as guerras napoleónicas.) Gibraltar simboliza o início da supremacia britânica sobre as rotas marítimas e a sua ascensão a potência global. Ao contrário, para os espanhóis, o início do século XVIII marcou o seu declínio de poder como grande potência europeia e império de dimensão mundial, a favor das rivais França e Grã-Bretanha. A monarquia espanhola ficou sob influência francesa após a vitória dos Bourbons sobre os Habsburgos. Perdeu o domínio dos mares para os britânicos. No plano interno, surgiu um governo centralizado em Madrid à maneira do governo francês de Paris, que eliminou os privilégios medievais de autonomia que subsistiam em partes do território espanhol. O 11 de Setembro de 1714, a Diada, lembra esse passado na Catalunha.

4. Neste início do século XXI, os destinos da Espanha e do Reino Unido voltam a cruzar-se. David Cameron, o ex-Primeiro-Ministro britânico do Partido Conservador, podia ter ficado na história como o político que derrotou a ambição nacionalista da Escócia. Podia também ter ficado na história como aquele que resolveu o problema crónico de vontade de saída britânica da União Europeia, especialmente agudo no seu partido desde Margaret Thatcher. Acossado pelo Partido Nacional Escocês (SNP) de Alex Salmond e Nicola Sturgeon e pelo Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) de Nigel Farage, quis acabar com a ameaça dos dois. Provavelmente levado pela vitória no referendo da Escócia — onde uma clara maioria de 55% dos eleitores optou pela permanência no Reino Unido —, subestimou o sentimento anti-União Europeia. Perdeu estrondosamente: cerca de 52% dos eleitores optaram pela saída. Em consequência desse resultado, a 29 de Março de 2017 a Primeira-Ministra britânica, Theresa May, fez um pedido formal de saída à União Europeia, ao abrigo do art.º 50. Até agora, a discórdia e as tensões políticas têm marcado um permanente impasse das negociações. Uma ausência de acordo em 2019 pode ser desastrosa para o futuro do Reino Unido, mas também para a Espanha e a União Europeia. Vejamos as razões.

5. A cadeia de acontecimentos tem um curso paralelo em Espanha ligado à ambição independentista da Catalunha. Primeiro sob a liderança de Artur Mas na presidência da Generalitat — sob qual se realizou um primeiro referendo em 2014 —, e, depois, de Carles Puigdemont. No referendo de 1 de Outubro de 2017, impulsionado pelos partidos da coligação Juntos pelo Sim / Candidatura de Unidade Popular (CUP) — o qual foi efectuado, tal como o de 2014, fora do quadro constitucional do Estado espanhol —, mais de 90% dos participantes (cerca de 43%) votaram a favor da independência. O objectivo assumido era declarar a independência e ficar na União Europeia. Sendo historicamente antiga, a vontade de independência da Catalunha cruza-se, agora, com o Brexit e a ambição independentista da Escócia. Importa notar que as expectativas da Catalunha se alicerçaram, também, na atitude da Comissão Europeia em relação à Escócia (e Irlanda do Norte). Após o resultado do referende britânico de 2016, favorável à saída da União, Jean-Claude Juncker e alguns governos nacionais (o francês, por exemplo), deram sinais encorajadores a Nicola Sturgeon — a actual líder do SNP e chefe de governo da Escócia. Alimentaram a ideia de esta poder permanecer na União Europeia no caso de se concretizar a saída britânica. Mas a estratégia de usar a Escócia contra o Reino Unido foi um erro político grave: ao alimentarem a ambição escocesa criaram um precedente do qual os catalães querem, compreensivelmente, beneficiar.

6. Nesta altura é impossível prever como vão acabar as negociações de saída do Reino Unido da União Europeia. Apenas se pode conjecturar sobre como será a relação futura entre ambos. Também não é possível antecipar todas as consequências do referendo independentista de 1 de Outubro na Catalunha, nem como será a sua futura relação com Espanha. No imediato, deverá ocorrer uma perda de autonomia pela aplicação do art.º 155 da constituição espanhola, o que vai espicaçar o sentimento independentista. O problema não vai ficar por aqui. É provável uma "guerra de atrito" para os próximos tempos com o intuito de desgastar o governo espanhol. Mas o não reconhecimento internacional é um poderoso obstáculo a uma independência de iure, com grandes prejuízos para quem a declare unilateralmente. Para já, não parece existir nenhum Estado com vontade de desempenhar o papel que a Alemanha teve em 1991, no reconhecimento da Eslovénia (e da Croácia), e em arrastar a União Europeia para o reconhecimento da Catalunha. Foi esse o princípio do fim de uma Jugoslávia federal. Mas estávamos no final da Guerra-Fria e a opinião pública internacional era favorável à formação de novos Estados. Via-os como parte de um movimento de libertação e democratização impulsionado pelo fim da União Soviética. Aspecto crucial: a Jugoslávia não era membro da União Europeia pelo que se tratava de um problema dos outros.

7. 2019 pode ser um ano de “perigo iminente” para a União Europeia. O risco não é o de uma guerra fratricida similar à da Jugoslávia nos anos 1990. O risco é o de um falhanço dramático nas negociações do Brexit — com ambas as partes a recriminaram-se e atacarem-se pelo sucedido. Nesse cenário, a Escócia e Catalunha terão em 2019, findos os dois anos de negociações previstos no art. 50.º do Tratado da União Europeia (e se não houver uma prorrogação acordada por ambos), um momento ideal para a independência e reconhecimento internacional. A Escócia, para fazer um segundo referendo, sair do Reino Unido e tentar permanecer na União Europeia. A Catalunha, aproveitando a independência da Escócia e o precedente favorável, para replicar a situação. Paralelamente, a Espanha, poderá ser tentada a recuperar a soberania sobre Gibraltar. Mas o que impedirá o Reino Unido, perdendo a Escócia, vendo ameaçado a soberania sobre Gibraltar e reabrindo-se o problema da Irlanda do Norte, de retaliar politicamente apoiando a Catalunha? Que outras reivindicações independentistas se seguirão? E como conter a vaga de populismos e nacionalismos que irão atacar a União por não preservar a soberania e integridade territorial dos Estados-membros? No ano de 2016, o Brexit (e a eleição de Donald Trump nos EUA) mostraram como o que parecia impensável se tornou possível. Esperemos que os europeus tenham aprendido a lição. Se a independência da Catalunha e o Brexit se cruzarem explosivamente em 2019, a União poderá ser arrastada para uma imparável espiral de desagregação.

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