Um filme para pôr a morte perto da vista, perto do coração

Em End of Life, a concurso no Doclisboa, John Bruce e Pawel Wojtasik acompanham cinco doentes terminais. Não para registar o seu declínio, mas para celebrarem a sua humanidade.

Fotogaleria
Sarah Grossman, escritora DR
Fotogaleria
Ram Dass, psicólogo DR
Fotogaleria
Carol Virostek, professora DR

Não é por acaso que se decide fazer um filme sobre o fim da vida, explica John Bruce num sofá da Culturgest. “End of Life explora um espaço muito misterioso. O nosso desconforto perante algo tão desconhecido como a morte tem um grande impacto no modo como vivemos. E tínhamos plena consciência de que um tema como este cria automaticamente uma distância.” Afinal, a morte continua a ser um dos grandes tabus da sociedade contemporânea – longe da vista, longe do coração. Mas esse é o absoluto oposto do lugar em que John Bruce, professor universitário, e o seu co-realizador Pawel Wojtasik, artista e cineasta, a colocam nesta sua primeira obra.

“Era precisamente isso que picava a nossa curiosidade, como cineastas e como seres humanos”, continua Bruce. “De que modo criamos uma distância psicológica, emocional, até mesmo física com a morte? E isso levou-nos a analisar a nossa própria relação com a proximidade e com o tempo, a nossa capacidade de estarmos, simplesmente, presentes nesse momento. Foi esse o nosso leme. Não estávamos com estas pessoas para lhes extrair informação ou para as entrevistar. Estávamos a passar tempo com elas, abertos ao que pudesse acontecer.”

Quatro anos depois de Bruce e Wojtasik terem dado início ao projecto, primeiro treinando como prestadores de cuidados paliativos, depois passando longas temporadas a filmar cinco pessoas em diferentes estados de evolução das suas doenças terminais, e finalmente trabalhando um ano na montagem, End of Life teve estreia mundial na Competição Internacional do Doclisboa (nova sessão esta quinta-feira às 16h30, no São Jorge). Um filme feito em “navegação à vista”, sem mapas nem fronteiras, porque, como explica Bruce, os realizadores queriam "que o espectador tivesse esta experiência a um nível muito visceral”. “Não estamos a fazer um documentário jornalístico, não recorremos às lógicas tradicionais da informação, do contexto, da exposição narrativa. Precisávamos de desafiar o espectador de maneira a abrir-lhe os olhos ou desalojar algumas noções pré-concebidas sobre o tema.”

A experiência de filmar End of Life mudou os próprios autores do filme, confessa Bruce enquanto reforça o seu distanciamento (deliberado) de quaisquer controvérsias sobre os cuidados paliativos ou a eutanásia. “Para nós foi de facto uma viagem muito profunda e dramática. Não entrámos no projecto com uma agenda fechada nem a querer provar uma qualquer hipótese. Queríamos apenas explorar o espaço da relação entre as pessoas: como podemos ser verdadeiramente humanos uns com os outros num dado momento, para lá de quaisquer papéis, títulos ou histórias. Como não tínhamos uma carga familiar ou um historial com as pessoas que filmámos, procurávamos estar ali, com elas, naquele momento.”

Sobretudo, tratava-se de olhar para os seus cinco sujeitos – a escritora Sarah Grossman, a professora Carol Virostek, os artistas Doris Johnson e Matt Freedman e o psicólogo e professor espiritual Ram Dass – não como “moribundos” ou “doentes” mas sim como indivíduos, como seres humanos. “Veja o caso da Sarah, que escreveu livros infantis toda a sua vida,” refere Bruce. “Ela teve um AVC muito forte que paralisou todo o seu corpo à excepção de um braço que consegue mexer. Podia falar e mexer a cabeça, mas fora isso estava inerte, mal se movimentava. E contudo, durante os dois anos em que a visitámos regularmente, ela exercia por inteiro a vitalidade do seu ser: continuava a trabalhar, a criar histórias. À medida que o seu mundo exterior se reduzia, o seu mundo interior expandia-se, e penso que as cenas com ela no filme transmitem isso muito bem.”

End of Life é uma longa-metragem porque os seus autores acreditam no poder do cinema como grande equalizador. “O cinema é fantástico para convidar e interessar pessoas de outras áreas ou de outros espaços”, diz Bruce, evocando as experiências que teve em eventos como o português Doc’s Kingdom ou o americano Robert Flaherty Film Seminar. “Qualquer um pode entrar numa sala de cinema, e a pergunta passa a ser quem está na sala e como a posso envolver no projecto. Mas é verdade que End of Life nasceu como um trabalho de investigação, e foi quando tive de fazer um 'ponto da situação' em público que percebi que existia aqui um filme. Dito isto, é um trabalho que não se esgota no filme. Criámos uma instalação multimédia, retrabalhando o material em termos espaciais, e tenho usado momentos que ficaram de fora em workshops com enfermeiros, familiares ou médicos de cuidados paliativos. Porque este filme pode ter uma vida para lá do écrã.”

Sugerir correcção
Comentar