“À maioria da crítica de arte de hoje falta-lhe génio”

Robert Kopp, professor de literatura que conhece como muito poucos a obra de Baudelaire, veio a Lisboa falar do autor de As Flores do Mal enquanto crítico de arte. A última das suas conferências é esta quinta-feira, às 18h, no Centro Cultural de Belém.

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Charles Baudelaire (c. 1862) fotografado por Étienne Carjat DR

Leu Baudelaire pela primeira vez aos 17 anos, como todos os jovens que estavam revoltados com o meio em que viviam. Usou-o para “fugir” ao que conhecia e ir mais longe. Começou, “sem surpresas”, reconhece, pela poesia de As Flores do Mal. O pai, um banqueiro protestante suíço, adorava pintura; a mãe, da alta burguesia parisiense, estava mais próxima da música. Robert Kopp optou pela literatura e é hoje reconhecido pelos seus estudos sobre alguns dos maiores escritores franceses dos séculos XIX e XX: Honoré de Balzac, Paul Verlaine, os irmãos Goncourt, André Gide, André Breton e, claro, Charles Baudelaire, o homem que acreditava ser preciso “inventar uma poesia nova” e assumiu como sua essa tarefa.

Foi precisamente o autor de As Flores do Mal (1857) e de O Spleen de Paris (1869) que esteve em foco na conferência que preparou para apresentar no Centro Cultural de Belém (a última das duas sessões é esta quinta-feira, às 18h), em Lisboa, a pretexto dos 150 anos da morte daquele que muitos consideram o primeiro dos poetas modernos.

“Ele reinventa a poesia porque sente que a que conhecia até aí se arrisca a desaparecer, porque há uma cultura a nascer que já não tem os referentes clássicos, já não se revê no romance balzaquiano”, explica ao PÚBLICO, pouco antes de falar, intensamente e durante uma hora e meia, sobre a ligação de Baudelaire (1821-1867) à crítica de arte, tema central da conferência. “A modernidade na sua poesia passa por uma mistura de tons e de géneros, pela combinação de palavras sublimes com outras de uso comum, pela insistência num verso que é chocante, cru, violento.”

É uma modernidade que reage ao que se passa à sua volta, com a França a entrar em pleno na Revolução Industrial, explica Kopp, com Paris transformada num gigantesco estaleiro para pôr em prática a grande reforma urbana do barão Haussmann, que organizou a cidade nos 20 grandes bairros que ainda hoje tem. Mas Baudelaire não acredita nessa promessa de melhoria eterna da humanidade e torna isso bem claro no que escreve.

“Para ele o verdadeiro progresso não é material, é espiritual e, neste campo, o homem está condenado, porque é sempre mau. Esta é a visão de Baudelaire – o homem está carregado de defeitos, é extremamente incompleto, um ser miserável, um criminoso em potência.”

Se lhe perguntamos porque fala tanto de poesia quando o tema é a crítica de arte, Robert Kopp responde de imediato: “Porque não se pode falar de Baudelaire sem falar de poesia. Se o que ele escreve sobre arte ainda hoje nos interessa, não é por causa do que ele sabe sobre pintura ou escultura, que é francamente pouco, é porque o que ele escreve é francamente bom. E porque nos seus textos sobre arte ela é apenas o pretexto para uma reflexão sobre a condição humana, o mal, o lugar que tem a beleza num mundo miserável, sobre o papel do criador na sociedade industrial, moderna.”

Poeta do olho

Foi através da crítica de arte, lembra Kopp, que Baudelaire entrou no mundo da literatura, onde poderia ter chegado ainda através do teatro ou do folhetim, um formato que o autor de Os Paraísos Artificiais (1860) desprezava, talvez por se destinar ao consumo popular através dos jornais de grande tiragem que começaram a ganhar expressão em 1836.

Nenhum desses jornais, nem qualquer outro, publicou a primeira crítica de arte que Baudelaire resolveu escrever, a propósito do salão de 1845, uma das grandes exposições que a Sociedade de Belas Artes organizava em Paris de dois em dois anos. Tinha 24 anos, ninguém o conhecia e todos os grandes jornais tinham já os seus críticos residentes, diz Kopp. “Há que reconhecer que teve coragem, se pensarmos que estavam expostas mais de 2300 obras. Escreveu na mesma e publicou o texto numa brochura com poucos exemplares. E continuou a fazer crítica nos anos seguintes.”

Recebera alguma formação em arte ao acompanhar um amigo, o pintor Emile Duroy, e escolhera como modelo os textos críticos de Diderot, nome maior do Iluminismo. “Diderot e Stendhal estão entre as maiores referências da chamada crítica dos escritores, bem diferente daquela que é feita por historiadores de arte profissionais.”

Baudelaire segue a tradição dos primeiros, hoje praticamente inexistente, defende este professor de Literatura da Universidade de Basileia, um dos promotores da mais recente tradução de Os Lusíadas para francês (Gallimard, 2015). “Baudelaire não quer descodificar um quadro – ele quer pegar nele para falar do que lhe interessa.” E para o fazer usa com frequência as mesmas palavras e estratégias: refere-se quase sempre à paleta de cores, à “harmonia” da composição, às aptidões para o desenho do artista, ao carácter “épico” da obra…

“Às vezes o que diz é desajustado porque sabe pouco de história da pintura, mistura conceitos. Além disso detesta a natureza e por isso rejeita obras que procuram representá-la sem laivos de hiper-realismo. Diz que as pinturas que representam o natural fazem a ‘santificação dos legumes’ e que o primeiro dever do criador é protestar contra a natureza. Mas nem por isso deixa de ser genial.”

Diga o que disser sobre a arte, os seus textos críticos são atravessados por uma série de ideias que depois encontraremos na sua poesia, e é por isso que, sublinha Robert Kopp, não se pode isolar esta sua produção: “Há preocupações sobre a arte que atravessam toda a sua obra. Além disso, ele era um poeta do olho, e não do ouvido. Ele amava a pintura. A sua poesia cria imagens com muita facilidade e é feita por alguém que se habituou a ver.”

O grande Delacroix

Eugène Delacroix é “o pintor mais original dos tempos antigos e dos tempos modernos”, da dor e da melancolia, escreve Baudelaire. Ora, o grande Delacroix, explica Kopp, não se revê no retrato que dele faz o jovem e deslumbrado crítico de 1845, para quem ele é o alfa e o ómega da pintura. “Baudelaire entroniza Delacroix mas, ao mesmo tempo, está sempre à procura de algo novo, inédito, está sempre à procura do grande pintor, daquele que representará para a arte do seu tempo o que Balzac representou para a literatura, e nunca o encontrará.”

Não é muito sensível a Gustave Courbet porque o acha “demasiado realista” e “incapaz de compreender o infinito”; respeita Ingres e diz que ele desenha bem, mas não se deixa entusiasmar em demasia; e nunca chega a compreender Édouard Manet, de quem é amigo.

O pintor de Olympia e de Almoço na Relva chega tarde na vida de Baudelaire, a quem empresta dinheiro, sem que este alguma vez lhe tenha pago. “Quando se encontram, Baudelaire já teve um dos seus acidentes cerebrais. Está diminuído, embora não fosse ainda um incapaz. Não consegue compreender as transformações que Manet traz, não consegue segui-lo, e tem a ideia forte de que a pintura entrou em decadência e vai acabar.” Acredita no seu fim, como já acreditara no fim da poesia, antes de a reinventar.

“Baudelaire, que não é um homem religioso, é muito reaccionário em muitas coisas. Diz, por exemplo, que o progresso é a diminuição dos traços do pecado original e defende, como Tocqueville, que a arte só pode conviver com a aristocracia e que tudo o que a democracia cria é medíocre.”

Nascido num meio burguês, Charles Baudelaire rejeitou o projecto de vida que para ele tinham desenhado a mãe e o padrasto e tornou-se presença assídua nos cafés de Paris frequentados por artistas e escritores. Estoirou a herança que lhe deixara o pai, contraiu dívidas atrás de dívidas e entregou-se a vícios vários, enquanto tentava fazer carreira na escrita, sem que chegasse a ver a sua obra reconhecida.

“Baudelaire tem horror a si mesmo, ao seu próprio corpo doente [morrerá com sífilis aos 46 anos] e dependente de drogas [ópio e haxixe]", diz Kopp. "Detesta as pessoas saudáveis, sobretudo as mulheres”, e vê o progresso como uma “superstição moderna” numa vida marcada pela morte. “Só a imaginação lhe interessa porque é a rainha de todas as faculdades, a única capaz de criar um mundo novo.”

Críticos de arte como ele, defende  Kopp, praticamente já não existem. Reconhece-se a tradição de onde vem no que Yves Bonnefoy (1923-2016) escreveu sobre Alberto Giacometti e no que Philippe Sollers nos disse já sobre a obra de Francis Bacon, exemplifica, mas no que publicam os jornais ela está praticamente morta. “Ainda há alguns bons críticos, mas nenhum deles é escritor, à excepção, talvez, de Jean Clair, que também é historiador de arte. A maioria da crítica de arte de hoje quer explicar tudo e fica ao nível do chão. Falta-lhe largura de vistas e de espírito, falta-lhe génio.”

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