Associação de psicólogos diz que juiz se “equivocou no século em que trabalha”

Outra associação de cidadãos apela à participação em protesto marcado para esta sexta-feira.

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Reacções a acórdão da Relação do Porto têm-se multiplicado. Rui Gaudencio

“Um atentado grosseiro aos direitos fundamentais das pessoas e à dignidade humana.” É assim que a Associação para a Intervenção Juspsicológica (AIJ), que representa psicólogos forenses e outros técnicos dessa área, reagiu nesta quarta-feira, num comunicado, ao acórdão de dois juízes do Tribunal da Relação do Porto que, este mês, desculpabilizam a violência doméstica contra uma mulher por a vítima ter mantido uma relação amorosa fora do casamento.

A nota assinada pelo presidente daquela associação, o psicólogo Carlos Poiares, diz que o juiz que redigiu o acórdão, Neto de Moura, se “equivocou no século em que trabalha e decide”. E continua: “Nenhuma decisão de órgãos de soberania está imune à liberdade de crítica, como acontece em qualquer Estado de direito democrático, e a comunidade de pessoas livres não se pode silenciar face ao absurdo.”

Carlos Poiares justifica o comunicado defendendo que, “enquanto profissionais”, cabe aos psicólogos forenses “o dever” de não se reduzirem “à passividade”; impendendo sobre estes profissionais “a obrigação de denunciar, como outras instituições estão a fazer, a natureza retrógrada das considerações judicialmente produzidas sobre o adultério feminino, dicotomizando as mulheres entre as honestas e as adúlteras, e com tristes referências a um tempo em que o homicídio era justificado pelo adultério”.

A AIJ sublinha ainda que o “casamento não cria laços de propriedade e o marido não é dono da mulher”. E remata: “Acórdãos como este estão longe de contribuir para a prevenção geral e menos ainda para a dignificação da magistratura e da justiça.”

Igualmente nesta quarta-feira, a Associação para a Cidadania, Empreendedorismo, Género e Inovação Social (ACEGIS) lamentou, em comunicado, que “o crime de violência doméstica” ainda tenha lugar “no último sítio onde seria expectável: nos tribunais e em decisões judicias”.

Na nota, a ACEGIS apela a todos os cidadãos que manifestem publicamente a sua indignação, com a sua presença na concentração marcada para as 18h desta sexta-feira, na Praça da Figueira, em Lisboa.

No comunicado assinado pela fundadora da ACEGIS, Susana Pereira, a associação defende que, “cada vez que a justiça falha, estamos a reconhecer, a aceitar, a desculpabilizar a normalização da violência contra as mulheres e os estereótipos de género”.

A associação sustenta que “a noção de adultério ou normas de comportamento definidas como aceitáveis nas relações de intimidade não podem de forma alguma justificar, legitimar ou desculpabilizar o crime de violência doméstica”. E insiste: “E muito menos pode a vítima ser culpabilizada e encarada como a transgressora face aos papéis e normas de conduta que lhes estão socialmente atribuídas e que impede a afirmação dos seus direitos.”

A “extrema gravidade” das afirmações do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, dizem, “não pode deixar ninguém indiferente”. E concluem: “O respeito pelas vítimas de violência doméstica e a sua protecção é um sinal de civilização e de uma cultura de direitos humanos. As afirmações aqui referidas significam, portanto, um retrocesso civilizacional e um atentado aos direitos humanos das mulheres.”

Desde que o acórdão foi conhecido no fim-de-semana já foram marcadas duas manifestações de protesto para esta sexta-feira e lançado um abaixo-assinado. As posições públicas de repúdio têm-se sucedido, da Ordem dos Advogados à Amnistia, passando pela Conferência Episcopal.

O PÚBLICO noticiou ainda que o juiz Neto de Moura já em 2013 havia minimizado outro caso de violência conjugal. O desembargador da Relação do Porto estava colocado na Relação de Lisboa quando lhe chegou às mãos um processo relacionado com as agressões de um homem à sua companheira. Tal como tinha sucedido no tribunal de primeira instância, de cuja sentença a vítima recorreu, o magistrado entendeu que os factos não mereciam uma qualificação jurídica tão grave como a de violência doméstica. E escreveu que a atitude de quem bate na mulher com o filho recém-nascido ao colo e ainda por cima lhe morde não merece especial censurabilidade.

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