Presidente: nem conjuntura, nem conjectura

Se naquela segunda-feira, tivesse sobrevindo a demissão da ministra e um pedido de desculpas genuíno, Marcelo não faria o discurso de terça nos termos em que o fez.

1. O discurso do Presidente da República demonstrou por inteiro o seu enorme poder e, em especial, o poder da sua palavra. Por mais que fale, por mais que apareça, por mais que se faça ver e ouvir, a palavra do mais palavroso dos presidentes não está gasta. O discurso de há oito dias demonstrou-o de forma absolutamente magistral

Eis o que – tal como fiz notar na devida altura – desmente uma parte substancial da crítica de Cavaco Silva à banalização da palavra e à vulgarização da intervenção por banda de Marcelo Rebelo de Sousa. Cavaco pautou sempre a sua actuação presidencial por uma grande parcimónia – aquilo a que há mais de dez anos chamei a “economia da palavra”. Arrancava do princípio de, quanto mais “económico” ou “poupado” fosse na sua comunicação política, mais eficaz, forte e notória seria a sua posição quando quisesse ou fosse chamado a intervir politicamente. Já Marcelo com a sua omnipresença e o seu discurso omnímodo parecia desbaratar esse capital de intervenção. Ao estar positivamente em todo o lado, ao comentar praticamente todos os assuntos da actualidade, ao raramente enjeitar a pergunta de um jornalista ou a interpelação de um cidadão, parecia correr o risco de haurir e exaurir qualquer potencial futuro de intervenção ou de actuação política. A gravidade e a sobriedade presidenciais, supostamente hipostasiadas em Emmanuel Macron, que tanto parecem ter impressionado Cavaco Silva, estão nos antípodas do modo como Marcelo lê e exerce o mandato presidencial. E, no entanto, apesar da loquacidade, da multiplicidade e plasticidade de gestos, Marcelo não perdeu – bem ao contrário – qualquer poder de influência, de condicionamento e de conformação da vida política.

2. Na verdade, o que fez o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, como sublinhei na crítica à visão de Cavaco sobre a magistratura presidencial do seu sucessor, foi adaptar o cargo ao seu perfil político, pessoal e psicológico. Quando muitos achavam que, por causa da sua irrequietude política e da sua inesgotável energia vital, dificilmente poderia desempenhar-se do múnus presidencial, Marcelo trocou-lhes as voltas e mostrou que nem sempre o hábito faz o monge. Por vezes, é o monge que fia e tece o hábito. Marcelo fez daquela que muitos julgavam a sua principal fraqueza a sua maior força. Correu o país de lés-a-lés, desfez-se em abraços e afectos, falou sempre e criou um lastro e um laço afectivo sem qualquer paralelo recente entre um político e o seu povo.

Depois, na esteira do político, comentador e professor desde sempre conhecido, tratou de gerir com inteligência emocional a relação com o Governo. Primeiro, apoiando-o, em alguns casos, para lá do que seria necessário e desejável. Depois, mostrando um enorme apego ao valor da estabilidade. Tornou-se bem claro que o Presidente não tinha nenhum preconceito nem nenhum “parti pris” quanto ao Governo ou à solução governativa. Se algum dia tivesse de o criticar ou admoestar, seria de todo insuspeita qualquer hostilidade política ou institucional. Era evidente, de há muito – e não faltaram observadores atentos que o disseram e predisseram –, que com uma relação “político-emocional” tão bem oleada entre Belém e S. Bento e com o incomensurável prestígio popular adquirido pelo Presidente, um simples espirro presidencial poderia provocar uma pneumonia ou até espalhar um surto de tuberculose no Governo.

3. Muitos olham para esta intervenção presidencial e vêem nela o sempre esperado momentum maquiavélico de Marcelo. Mas também aí, creio bem, continuam a não compreender que se o monge fez o hábito, também o hábito tem feito o monge. E Marcelo não foi a sagaz raposa da política portuguesa que, num ápice e de súbito, tira o tapete ao judoca em plena luta (para usar uma imagem das artes marciais que tanto preza). O Presidente esteve desde o primeiro dia à espera que o Governo tratasse convenientemente da questão, com sentido de Estado, com equidade, com bom senso (que faltou por completo). Depois de Pedrógão, podia ter sido mais assertivo e duro, mas quis dar espaço e tempo ao executivo para este tratar das coisas a seu modo. Marcelo avisou Costa em tempo e deixou claro que, depois de Pedrógão e do cada vez mais nebuloso e desprestigiante caso de Tancos, fazer férias nas Baleares não era talvez a resposta que se espera de um primeiro-ministro. E passou o Verão em visitas às vítimas e em conhecimento e estudo do terreno, sempre lembrando que havia que esclarecer e assumir responsabilidades, que a culpa não podia morrer solteira. Esperou pelo relatório técnico, cuja publicação teria sido ocasião soberana para Costa emendar a mão e remediar as coisas tarde, mas ainda dentro do que considerava o “seu” tempo. Finalmente, deixou o primeiro-ministro e o seu Governo, já com a consumação da catástrofe e seguramente em perda, falar primeiro, dando-lhe uma última oportunidade para não ter de recorrer a uma intervenção mais drástica. Se naquela segunda-feira, tivesse sobrevindo a demissão da ministra e um pedido de desculpas genuíno, Marcelo não faria o discurso de terça nos termos em que o fez. Isto mostra bem que, ao contrário do que o entorno de Costa e do PS andam para aí a propagar, o Presidente revelou um grande sentido institucional, esperou até ao limite do suportável e só tomou as rédeas da situação quando o Governo se revelou manifestamente incapaz de compreender o alcance do sucedido. Este não é o Marcelo maquiavélico, das partidas e das jogadas de xadrez. Marcelo não está a jogar no campeonato eleitoral nem na feira de gado do ministro Santos Silva; está a planar para a história e – coisa que não se deve subestimar – a dialogar, ainda que do seu modo descontraído, com a sua consciência. Sem ingenuidades bacocas e muito menos desígnios hagiográficos, há um lado transcendente em Marcelo, que políticos meramente realistas ou tácticos, formados e forjados na imanência ou, pior, num maquiavelismo de pacotilha, ainda não conseguiram vislumbrar.

Sim

António Tajani. Anunciou que o valor económico do prémio Princesa das Astúrias atribuído à União Europeia na categoria Concordia será doado às vítimas dos incêndios em Portugal e Espanha.

Não

António Costa. Nada explica a auto-suficiência, displicência e arrogância na gestão da crise dos incêndios e na derrocada da protecção civil. É evidente que não soube estar à altura das circunstâncias.

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