Da moção de censura como manobra de distração

O que o CDS está a tentar fazer é confundir habilidosamente o sentido geral de censura (como "repreensão" ou "crítica") com a função específica e constitucional que uma moção de censura deve ter.

O CDS subiu três vezes à tribuna da Assembleia da República para defender a moção de censura que apresentou. Pela voz de Pedro Mota Soares, declarou que a moção de censura servia para apresentar propostas de combate aos incêndios e seguiu enunciando cerca de uma vintena de medidas, a maior parte das quais estão no relatório da comissão independente nomeada pelo Parlamento e são, de forma genérica, apoiadas por toda a gente. Pela voz de João Almeida, o CDS atacou a esquerda por já ter apresentado moções de censura no passado. Telmo Correia, por sua vez, acusou a maioria de usar o passado longínquo (em detrimento de usar apenas o passado recente) para explicar os incêndios. Aparentemente, há uma espécie de cláusula de caducidade em relação às causas dos incêndios, no entender do CDS: todas as ações governativas devem ser retrospectivamente consideradas responsáveis pelos incêndios, menos aquelas que tenham ocorrido antes da data em que Assunção Cristãs deixou de ser ministra da Agricultura e do Ordenamento do Território. A liberalização do eucalipto ou a extinção da Secretaria de Estado das Florestas, ambas levadas a cabo sob a responsabilidade política da líder do CDS, não contam — porque o CDS acha que não devem contar.

O que não se ouviu em nenhum momento durante os discursos de encerramento da moção de censura do CDS foi aquilo para que as moções de censura servem: para fazer cair o governo, para substituir uma maioria parlamentar por outra ou para levar o país a eleições. Eu nenhum momento daqueles discursos o CDS disse "contem connosco para formar uma nova maioria neste parlamento" ou "Sr. Presidente, dissolva o parlamento e vamos para eleições". Restou assim ao CDS a trivial justificação de que apresentava uma moção de censura porque o governo merece ser censurado, e porque ninguém pode (nem deve) impedir a oposição de censurar o governo. Claro que não. Mas o que o CDS está a tentar fazer é confundir habilidosamente o sentido geral de censura (como "repreensão" ou "crítica") com a função específica e constitucional que uma moção de censura deve ter, e que o CDS nem sequer chegou a fingir que a sua moção de censura tivesse.

Ora, se ninguém pode (nem deve) impedir a oposição de apresentar uma moção de censura, também a oposição não pode esconder-se atrás desse direito para evitar que a moção de censura seja ela própria censurada.

Se há coisa que aprendemos nos últimos meses é que mesmo uma instituição como a Assembleia da República não tem uma "largura de banda" ilimitada. Há debates que não se fazem porque outros foram considerados prioritários. Se a seguir a Pedrógão não se discutiu em profundidade a proteção civil foi porque se deu prioridade a um debate da reforma florestal importante mas a destempo. Se a seguir à tragédia do 15 de outubro não discutirmos o que agora importante, e que é não só a reforma florestal e a proteção civil mas a recuperação económica e social do interior e das regiões atingidas pelas catástrofe, será também porque um partido como o CDS decide monopolizar o tempo parlamentar num número político que lhe dá jeito porque pretende substituir o PSD como principal partido da oposição e, em simultâneo, ocultar as suas próprias responsabilidades políticas na criação do contexto que agravou as catástrofes.

Durante o debate, por muitas vezes o CDS mencionou os mais de cem mortos das tragédias deste ano. Esses nossos concidadãos mereciam algo de bem mais digno do que serem usados como justificação para uma moção de censura que nem a si mesma se levou a sério.

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