Porque é que um suburbano dá em jihadista?

No concurso do Doclisboa, Also Known as Jihadi faz uma pergunta que os franceses não conseguem deixar de colocar desde os mortíferos atentados de Paris. O realizador Éric Baudelaire explica a sua abordagem oblíqua ao tema, abdicando da palavra para deixar as imagens falarem por si.

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“Vivemos numa época em que a vida na sociedade ocidental é particularmente alienante, num momento em que existe um grande vazio ideológico. O Ocidente já não oferece nenhum tipo de pensamento ou de coesão social, para lá do enriquecimento pessoal como empreendedor ou colaborador da Uber… E num contexto como este, é evidente que qualquer proposta com algo de radical se torna atraente.”

É por aqui que Éric Baudelaire (n. 1973), politólogo reconvertido em artista multimédia reconvertido em cineasta autodidacta, nos convida a entrar no seu novo filme, a concurso esta terça-feira na Competição Internacional do Doclisboa (Cinema São Jorge, 18h30). Also Known as Jihadi é a história de Abdel Aziz Mekki (nome fictício), nascido em França, filho de emigrantes argelinos, e da sua “radicalização”. Mas Baudelaire, já por duas vezes premiado no Doclisboa, está menos interessado no que Aziz fez ou deixou de fazer e mais interessado no percurso que o levou de normal jovem suburbano a aspirante a jihadista.

“Comecei a trabalhar muito rapidamente neste filme, após os atentados de 13 de Novembro de 2015 em Paris", explica o realizador. “Mas o tema do filme não são os atentados em si. Parecia-me mais importante compreender que há [anualmente] 700, 800, 900 jovens franceses que já não conseguem encontrar um destino em França, e que por isso procuram outra vida.” Foi por isso que escolheu o caso de Aziz: “Era um dossier judicial que tinha várias pessoas, mas ele estava no centro, porque era ele que recrutava, que encorajava os seus amigos a irem ter com ele à Síria. Entre esses amigos havia todo um espectro de casos: dos turistas da jihad, que ficavam uma semana e regressavam a França decepcionados, àqueles mais perigosos, com convicções mais fortes que os podiam levar à morte. O Aziz estava um pouco no meio desse espectro: tanto podia cair para um lado como para o outro. Sei de pessoas que leram o dossier e que têm opiniões muito diferentes sobre o que ele representa.”

Trata-se, então, de criar um olhar oblíquo, descentrado, sobre o desfasamento entre a falta de expectativas de uma população jovem sem futuro e um país que parece ignorá-los, arquivando Aziz como um jihadi sem que o dossier precise alguma vez o que ele realmente fez. “Interessava-me fazer um filme sobre a maneira como a trajectória de Aziz se inscreve no contexto geográfico, histórico, político da França contemporânea – a relação entre Aziz e a França e as suas estruturas… ou seja, o choque com um contexto que faz com que não queira continuar a ser francês.”

Para filmar a sua história, Baudelaire inspirou-se numa figura tutelar da sua prática artística: Masao Adachi, cineasta japonês vanguardista dos anos 1960 ligado ao movimento radical extremista Exército Vermelho Japonês, e criador da “teoria da paisagem”, segundo a qual os sistemas sociais e de poder são revelados não a filmar pessoas mas sim as paisagens que as moldaram. “Até aqui, a teoria foi usada mais ao nível do manifesto, da provocação conceptual. E perguntei-me às tantas: o que aconteceria se eu passasse à prática?”

Dito e feito: Also Known as Jihadi, inspirado pelo filme-manifesto de Adachi AKA Serial Killer (1969), não tem narração em off, nem diálogos, nem pessoas. Intercala planos das paisagens, dos edifícios, das ruas, das cidades que Aziz percorreu ao longo da sua viagem de radicalização, com excertos do dossier judicial, interrogatórios, acusações, relatórios de vigilância das autoridades francesas. “Os meus filmes anteriores eram muito palavrosos”, sorri Baudelaire. “E o tema do jihadismo e do terrorismo é sempre tratado com muito ruído, com muito barulho – basta ver os noticiários e as reportagens televisivas sobre o tema, onde há sempre uma profusão de palavras. Parecia-me por isso importante fazer um filme construído sobre o silêncio, sobre a ausência de palavra. E a ideia de usar textos retirados da própria documentação oficial surgiu porque ao percorrer o dossier tive a impressão de estar a ler um guião de um filme – um interrogatório tem qualquer coisa de diálogo, e isso permitia-me criar algo narrativamente muito forte.” 

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