O Café Perdigão

A aldeia do Rosário, nas proximidades do Alqueva, preserva intocado um espaço de outros tempos.

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Outro do género estaria de portas trancadas e mobília embrulhada em brancos sudários, trespassado por teias de aranha e um silêncio devoluto: este, no entanto, ainda tem um toldo desenrolado a assombrear o rectângulo da entrada, que é às fitas coloridas e de plástico, a máquina de café ainda sibila, as moedas tinem na caixa registadora e há ruído de gente.

A aldeia do Rosário não fica longe de um dos lânguidos braços do Alqueva, mas é erma, sufoca-a um silêncio ingente de desamparo, e como dizia o outro (que por engano aqui passou) “quem lá vive sobrevive”, ora cultivando um talhão no quintal das traseiras, agarrado ao truísmo da enxada, ora dobrando os joelhos num banco vespertino, para o crepúsculo do tempo. Mas o edifício deste casal não tem terreno, é bloco único, habitacional e comercial, e rima com a resistência de alguns mitos, que por muito que o tempo teime em espezinhar ainda florescem: e a porta abre às 7h30, todos os dias.

O café é castiço, integralmente pitoresco, como albergue de relíquias museológicas. O dono é barbeiro e mecânico de duas rodas, tem a cadeira ao centro da divisão justaposta à cafetaria — mostra-me o objecto e o assento rotativo, de dois tampos, higiénico e prático, à antiga — e aponta para trás, descrevendo um arco com o dedo: o espaço desenha-se dentro dos limites, em pilhas de aprumo: nas caixas não há poalha, os cabides estão rotulados por coerência e as gavetas personalizadas, oleadas, deslizam sobre as suas calhas. A oficina fica noutro espaço, num amontoar menos criterioso de utensílios, mas nem por isso disfuncional: para lá chegar há que passar por baixo da cabeça empalhada de um javali — “Mandei-o embalsamar (…) cacei-o quando ainda os havia por esses barrocais (…) este pesava cento e trinta quilos”, foi esclarecendo o idoso — e mesmo hoje parece que o bicho escabuja baba do focinho dentudo.

Ainda há o armazém dos vendíveis: um confessionário de paredes atulhado de prateleiras, que dimana um cheiro a tabaco antigo, e que no vão da porta ostenta uma colecção de puxadores de bicicletas — mal caibo no seu interior, e à distância de um braço toco no tecto. E só falta mencionar a casa de banho, tão característica que nem vale a pena descrevê-la (bastaria pôr as mãos no lavatório e olhar para a torneira para percebê-lo).

Despeço-me por umas horas e volto pela torreira desta tarde de Verão em que escrevo: venho beber desta atmosfera de antanho. O proprietário está lá fora, de volta do jipe — da carcaça de uma carrinha parada recortou uma peça que instalou como guarda-luvas sobresselente: e é isto que me fascina, pois as mãos deste homem falam das suas engenhocas de modo risonho, com o mesmo fascínio da criança que constrói uma escultura de pedras: a sua tesoura ainda corta cabelos, a oficina ainda cheira a óleo, a mulher abre o café a partir das 7h30, e a vida ainda não estagnou, e ali está, ao serviço de si mesma. 

Regresso depois, mais tarde, numa manhã sem dia. D. Inácia, octogenária, está ao balcão, de cotovelos apoiados na bancada, e Amador Perdigão, de 78 de idade, circula entre as divisões com ancilar desenvoltura. D. Inácia sorri abundantemente, porque lhe aumentaram a reforma em seis euros: um cliente remoca sobre o caso, argumentando que a quantia era “escarninha”, mas prontamente Amador defende a esposa, declarando que o dinheiro já comprava o pão para duas semanas: e os dois despregam-se em gargalhadas, e nos seus rostos não se encontram rugas de velhice.

André Paiva

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