Scúru Fitchádu: O punk não morrerá enquanto se ouvir funaná

Em casa ouvia funaná e falava crioulo e na rua ouvia punk, metal ou hip-hop. Agora, aos 37 anos, Marcus Veiga é Scúru Fitchádu e expõe essas experiências, numa das aventuras vitais da música portuguesa actual, para sentir na quarta-feira, no MusicBox, em Lisboa, no Jameson Urban Routes.

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Singularidade não falta a a Marcus Veiga, conhecido como Sette Sujidade e como Scúru Fitchádu: a música reflecte vivências, as sonoridades com que se relacionou e as baralhações identitárias António Marinho da Silva

É agora, a bateria e as electrónicas deram um pouco de tréguas aos corpos, existe quase tranquilidade na sala, a voz rasgada do cantor recolhe-se, a assistência suspira, mas a qualquer momento tudo vai voltar ao desvairado local inicial.

E o ritual repete-se. O som regressa. Os graves parecem fazer ricochete nas paredes, a bateria acelera ainda mais, há ruído e distorção, ouve-se em fundo um acordeão e ferro, enquanto o cantor grita em crioulo algo de imperceptível, mas é a forma irada como o diz que fica registado. Quem já viu Scúru Fitchádu em palco sabe que é uma experiência dos limites.

Atitude punk e distorção cruzam-se com os ritmos cabo-verdianos do funaná, mediados pelas técnicas do dub ou hip-hop e pelas metamorfoses electrónicas. No Portugal dos últimos meses é difícil encontrar uma outra aventura musical tão vital. Por detrás dela está o português Marcus Veiga, também conhecido pela alcunha Sette Sujidade, e agora também como Scúru Fitchádu.

O ano passado lançou um homónimo EP digital de cinco temas. Na próxima quarta-feira, no MusicBox, em Lisboa, no contexto do festival Jameson Urban Routes (que acontece entre 24 e 28 de Outubro com Havoc feat. Big Noyd, Lone, Laid Back, Xinobi feat. Da Chick, Black Lips ou Sherwood & Pinch), apresentará novos temas, na companhia de um baterista e de um outro elemento em electrónicas, numa noite onde haverá também um concerto dos Black Bombaim na companhia do saxofonista Peter Brötzman.

“Este projecto foi pensado para ser apresentado ao vivo, até porque esta é uma música física que não dá para viver sentado”, diz-nos Marcus Veiga, realçando que a forma como se comunica, através dos vídeos ou das fotos, também acaba por ser importante. “A parte visual participa num universo que quero que seja compreendido como um todo. Estou-me nas tintas para as visualizações, para os ‘gostos’ das redes sociais ou se a minha música é muito ouvida. Mas desejo que quem oiça possa compreender a atmosfera que envolve isto tudo.” E dá o exemplo de um músico de que gosta. “Nunca vi Tom Waits ao vivo, mas quando vejo uma foto ou vídeo dele, aquilo transporta-me para uma dimensão que reconheço como sendo apenas dele, com qualquer coisa de visceral e cinematográfico e isso é importante.”

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Singularidade é também o que não falta a Scúru Fitchádu, com a sua música a reflectir as suas vivências, as diferentes sonoridades com que se foi relacionando e as baralhações identitárias. Continuamente perguntam-lhe se é cabo-verdiano ou português e ele ri-se por ser obrigado a escolher, como se não pudesse acumular. “Se for a Cabo Verde dizem-se que sou ‘tuga’. E a verdade é essa. Nasci aqui, é esta a realidade que conheço, sinto-me daqui, sou português, mas é verdade que tenho um forte vínculo com a realidade transmitida pelos meus familiares.”

Ele nasceu em Lisboa, tendo crescido na zona do Oeste, “entre o Bombarral e as Caldas da Rainha.” A mãe é angolana, o pai cabo-verdiano, não estranhando que em casa se ouvisse algum semba, mas essencialmente morna ou funaná. “De Angola conheço, infelizmente, pouco. Tenho mais afinidades com a cena crioula”, diz, acrescentando que se entre a família ouvia música africana, na escola e na rua os sons eram outros. “Nos anos 80 um gajo levava com o Michael Jackson ou o David Bowie e depois nos anos 90, na escola, apanhei com o grunge e a cena trash metal, antes de me identificar com o hip-hop do General D, da compilação Rapública ou dos Da Weasel e das festas no Johnny Guitar, em Lisboa, embrião do movimento hip-hop que me levou a descobrir dos Public Enemy aos Wu-Tang Clan.”

Nas Caldas da Rainha dos anos 1990 o cenário era essencialmente rock o que, olhando para trás, lhe parece hoje significativo. “Se nessa altura vivesse na zona de Almada, no meio da comunidade hip-hop, provavelmente não teria sido submetido a outros estímulos, do punk dos Crise Total aos Atari Teenage Riot ou Discharge, e hoje percebo que foi importante”, diz, acrescentando que a vontade de se exprimir musicalmente e de integrar uma dinâmica artística sempre esteve com ele.

“Lembro-me de ir ver os Da Weasel no Dreamer’s Club na Foz do Arelho, para aí em 1994, e de pensar que era mesmo aquilo que queria fazer e foi então que comecei a escrever. Fiz coisas mas nunca saíram da gaveta. Claro que na altura das mixtapes do hip-hop também andei aí e fazia coisas, tocando aqui e ali, mas nunca tive grande exposição. Se calhar ainda bem. Fiquei na sombra, mas não fiquei conotado com nada.” Nessa época, e ainda hoje, havia dois mundos que raramente se cruzavam. “Lembro-me de ouvir Sepultura em casa e quando isso sucedia os meus primos punham-me de lado. Não compreendiam como é que podia gostar daquilo. O mesmo sucedia quando ia a concertos hardcore. O pessoal olhava para mim com estranheza.”

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Na actualidade quando dá a ouvir a sua música a quem gosta de funaná as reacções são quase sempre negativas. “Acham que é um sacrilégio. Levo na cabeça. É complicado. São muito conservadores nesse aspecto, mas ao mesmo tempo percebo porque o que faço é incomum. A minha música é sombria e eles interrogam-se: ‘mas este agora traz para aqui referências de Tom Waits e Nick Cave? Mas o que é isto? Eu quero mas é dançar!”

Da mesma maneira não será fácil encontrar quem se identifique com punk ou metal e que aceite a junção com funaná. Depois da visibilidade garantida na última década por projectos como os Buraka Som Sistema, Batida ou Throes & The Shine, poder-se-ia imaginar um cosmos musical português cada vez mais contagiado por miscigenações. Elas acontecem, mas ainda de forma lenta e com muitas resistências envolvidas. “É estranho não é?”, interroga Marcus. “Portugal tem este potencial, com sucessivas gerações de pessoas com raízes familiares africanas, mas que já nasceram e cresceram cá, tendo sido expostas a tantos estímulos como eu, mas ainda existem barreiras a abolir.”

O contexto musical português, e internacional, tem vindo a ajudar à visibilidade de Scúru Fitchádu, mas o germinar da ideia vem de longe. “Parte do desejo de introduzir mais agressividade na minha música e de sentir que através do hip-hop não era possível. Foi então que comecei a interrogar-me sobre a minha identidade e as coisas que fui ouvindo ao longo do tempo, como os cabo-verdianos Bulimundo e os Ferro Gaita, ao mesmo tempo que ouvia música de peso como os Melt Banana, Ratos do Porão ou Prodigy. Foi a partir daí, dessa ideia de juntar esses dois mundos, que a coisa foi progredindo, ao mesmo tempo que me interrogava como introduzir elementos de crioulo. E ainda estou à procura.”

A base sonora é essa. Mas depois existe a interpretação vocal, “que vem de uma base hip-hop, mas mais a rasgar, virada para o punk”, e elementos da chamada bass music, “que foi uma das fontes a que fui beber, com o som dos graves sempre presente”, diz. Na sua visão, a música que tem para propor é essencialmente para sentir ao vivo, até porque os elementos que a constituem é aí que parecem ganhar corpo, sejam provindos “do punk, da música de Cabo Verde ou da bass music.”  

Se o punk é grito de revolta, o funaná, na percepção geral, parece ser festa. Parecem duas realidades que não se tocam. “Errado!”, exclama Marcus. “O funaná que a maior parte das pessoas conhece é dança e baile, mas na verdade é também sofrido, é o blues de Cabo Verde. É rua. A própria composição é simples, repetitiva, apenas alguns acordes e nesse sentido aproxima-se do punk. Não há grande virtuosismo. É música de trabalho, de lamento e de revolta mesmo que seja dancável.”

Ouve-se a música intensa e física de Scúru Fitchádu e percebe-se que vem das entranhas, povoada por um remoinho de emoções que há muito povoam o imaginário de Marcus. Porque é que não foram patenteadas antes? “Todos os dias penso nisso”, diz o músico de 37 anos. “Porque é que isto não saiu mais cedo se sempre viveu dentro de mim? Não sei. Mas ainda bem que saiu agora. Há alguns anos talvez fosse cedo demais e não tivesse o mesmo tipo de respostas que agora estou a obter. Talvez, simplesmente, não fosse a altura certa para fazer isto de forma mais madura.” Uma coisa é certa, diz, a música que agora expõe cresceu com ele, não é postiça. “Continuo o mesmo de sempre, o gajo que às vezes tem de contar os trocos para pagar um café. Estou até cada vez mais anárquico do que era. E não tenho nenhum interesse em ir por outro caminho.”

Com uma peculiaridade tão afirmativa, conquistada com alguns concertos e meia dúzia de temas como Ken ki frâ, S’ma laba burkan ou Ravoluçan ketu, existe a curiosidade em saber o que se vai seguir. Em causa estão várias incógnitas, entre manter uma sonoridade tão vigorosa ou torná-la mais transversal, correndo o risco de a domesticar. “Sei desses perigos todos”, reflecte ele, “e não pretendo polir ou tornar a sonoridade mais respirável para chegar a mais gente. Quero é continuar a mexer com as pessoas que percebem o que está aqui a ser feito.” E conclui: “Isto não é música fácil. É música de emoções e de combate. Não tenho a pretensão de fazer sentir bem as pessoas. Quero é que elas sintam verdadeiramente o que está a ser feito.”

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