Valérie Massadian: “O tempo é a coisa mais preciosa no cinema”

Seis anos depois de Nana, a fotógrafa francesa regressa à longa-metragem com Milla, história de uma adolescente que aprende a ser adulta. Um filme que dilui as fronteiras entre o real e o ficcional, a concurso no Doclisboa.

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Mel Massadian

Valérie Massadian não tem papas na língua.

"Já não tenho 20 anos, não faço cinema para fazer uma carreira. Já vivi na verdade muitas vidas e o cinema é apenas a última – sem nada de fatalista, porque me dá a sensação de ter encontrado o meu lugar. No cinema, as possibilidades são para mim infinitas: amanhã posso perfeitamente pegar na minha máquina fotográfica e no meu iPhone, ir fazer um filme e fico perfeitamente bem… Mas, quando fiz Nana, foi um tal milagre tê-lo feito sozinha, com 80 mil euros, em absoluta liberdade – havia uma certa virgindade que, desta vez, não existiu. Houve muita gente que gostou de Nana, mas em França não me levaram muito a sério. Houve algumas pessoas pelo mundo fora que me tomaram logo por realizadora, disseram, 'OK, aqui há qualquer coisa', mas não foram muitas! E por muitas razões – o meu sexo, a minha idade, o meu meio social, as minhas vidas anteriores, a minha franqueza, a minha falta de maneiras – não pertenço à casta [francesa] do cinema. Isso não me impedirá de fazer filmes mas..."

O discurso é torrencial, pontuado por gargalhadas sinceras, pausas para pensar, uma ou outra passa nos cigarros comprados em Portugal, tirados de uma carteira onde se vêem crachás de promoção de filmes de amigos seus – O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, e A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho. Valérie Massadian tem uma "história" com Portugal: foi a descoberta do cinema de Pedro Costa que fez esta fotógrafa passar à imagem em movimento; Portugal foi dos raros países onde Nana (2011), história de uma menina de quatro anos à solta na floresta e vencedor do prémio de Melhor Primeira Obra em Locarno 2011, teve estreia comercial; e o colectivo português Terratreme é co-produtor da sua segunda longa, Milla, que saíu vencedora do Prémio do Júri na competição secundária de Locarno 2017, Cineasti del presente.

Esse prémio está ainda no futuro quando conversamos com Valérie Massadian, num pátio recolhido de uma pequena pensão de Locarno, num dia quente de Agosto, pouco depois da primeira sessão pública de Milla. A segunda longa da fotógrafa francesa de ascendência arménia é um dos títulos-âncora da competição do Doclisboa 2017 (Culturgest, terça 24, 21h30; São Jorge, sexta 27, 16h30), o que pode parecer estranho para um filme que tem os contornos de ficção, acompanhando o percurso de uma adolescente à deriva, vivendo "à margem" com o seu namorado. Mas a actriz que dá (literalmente) vida a Milla, Séverine Jonckeere, é uma não-profissional recrutada num longo casting em centros de acolhimento, contracenando com Luc Chessel, que tem no currículo pequenos papéis em filmes de Nicolas Klotz ou Benjamin Crotty mas que é, na "vida real", crítico de cinema do jornal Libération. E, tal como Nana cruzava as fronteiras das "ficções do real" ao se deixar levar, no momento, pela presença e pela fantasia da sua pequena actriz, também Milla flutua num limbo onde é difícil perceber o que é real e o que é encenado.

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Milla, filme vencedor do Prémio do Júri na competição Cineasti del presente de Locarno

O que Valérie filma é, por entre uma história esboçada de modo solto, o documento do encontro destes corpos, destas pessoas, num enquadramento de cinema, como explica entre um cigarro e um copo de água. "Tive vontade de confrontar estas duas inteligências – a Séverine tem uma inteligência de sobrevivência, quase animal, e o Luc uma inteligência estruturada. Para mim confrontá-los era o melhor meio de conseguir falar da possibilidade, e da impossibilidade, amorosa entre os seres. Porque vão sempre existir momentos de incompreensão."

Perguntamos-lhe se espera que haja uma "faísca" frente à câmara. "Talvez não uma faísca," diz, "porque uma faísca é qualquer coisa que faz barulho, que se nota… Não, quando coloco a câmara num local, espero que chegue a graça." Explica melhor: "Posso ter uma ideia de realização, mas isso não passa de um ponto de partida. Essa ideia é algo para ser destruído, submergido, partido, perdido, para encontrar outra coisa em seu lugar. O meu primeiro desejo é que, nesses enquadramentos extremamente estruturados, que podemos considerar como fixos, de repente aconteça qualquer coisa de sanguíneo, de vivo, que não se controla – nem o enquadramento, nem quem está à frente da câmara, nem quem está por trás da câmara. Algo que escape à ideia."

Mais à frente na conversa, Valérie falará, entre risos, de “espeleologia” – “é um pouco como andar a pesquisar ouro, e de repente encontramo-lo, na montagem, quando reparamos que está lá qualquer coisa que não tínhamos visto durante a rodagem, uma espécie de prenda." Mas não há improvisação, "ou certamente não como a entendemos, porque a improvisação seria um trabalho sobre o texto e sobre o que é dito," explica a realizadora. "Ora nada está escrito, aliás os argumentos para mim não existem, são apenas pretextos para assaltar bancos!”, diz entre gargalhadas sonoras, referindo-se à necessidade burocrática de apresentar um documento escrito para garantir apoios. "Não há diálogo escrito, e o meu trabalho com os actores é um pouco como se faz em música – sobre uma palavra, uma nota, uma emoção. Encontrar esse momento de graça não é improvisação, é apenas tempo. E o tempo é a coisa mais preciosa que existe no cinema: o tempo de fazer, o tempo de pensar, o tempo de montar."

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Por essa mesma bitola, Valérie confessa que há algo de profundamente instintivo no seu cinema. "Foi-me muito fácil filmar Nana. É-me muito fácil trabalhar com crianças – basta-me estar ali, de gatas, toda suja, sem nada que explicar, a brincar e a filmar e a divertir-me. Aqui ia ser diferente, porque estou a trabalhar com gente que já é adulta, que já faz parte do mundo, que já tem consciência da sua imagem, do que vão pensar deles, e é muito mais difícil aceder a esse abandono. Funciono muito por instinto, e no plateau tudo é muito orgânico, sem um pensamento estruturado." É também aí que entra a definição de "ficção do real", porque o que a realizadora filma é também a aprendizagem da vida frente à câmara; o que acontece é, de facto, um registo do confronto dos seus actores com a realidade. "Mas procuro ampará-los, senão seria um vampiro, sentir-me-ia suja. A Milla é alguém atirada para um mundo ao qual não está minimamente adaptada – não sabe fazer a cama, dobrar roupa, mas tenta, esforça-se, e aprende, e de repente tem de aprender a ocupar-se de uma criança… Nessas cenas queria mostrar a sua fraqueza mas sem cair no ridículo. Porque ela esforça-se, ela tenta, e tenho vontade de a proteger."

Valérie admite, aliás, que o seu maior medo ao terminar um filme não reside no acolhimento da crítica ou do espectador. "É sentir que não estive à altura das pessoas com quem trabalhei. Lembro-me que acabei Nana uma noite às três da manhã, e saí de casa para ir andar a pé, estava praticamente a levitar e chorava que nem uma madalena, "consegui, acabei o filme, e não os traí!" Mais gargalhadas. "Aqui não acabei o filme às três da manhã nem chorei, mas senti o mesmo: que me podia olhar a mim própria ao espelho e olhá-los a eles nos olhos, e eles não se iam sentir sujos, traídos, gozados. O filme era digno, honesto, humano, não era perfeito, mas se eles o vissem e nele encontrassem a alegria e a ternura que procurei, então outras pessoas também o iriam sentir."

Porque, na verdade, é isso que Valérie Massadian quer fazer: levar os espectadores a sentir. "Se me pedem para ir passar duas horas com gente que não conheço numa sala escura, não quero que me dêem a papinha feita. Dou por mim com cinco anos de idade, como se fosse criança. Fico a ver, à espera que o filme me diga o que tem para me dizer ou para me fazer sentir. Não espero nada de um filme, porque não há nada a esperar: o filme é projectado e cabe-nos a nós decidir o que vemos nele. A maior parte dos filmes não nos deixam espaço para sermos nós mesmos, para sentirmos, para pensar. Tudo é dito, redito, explicado, mostrado. Lembro-me de mostrar Nana na aldeia onde o rodámos, e no fim da projecção uma miúda dos seus 25 anos, com três meninos pela mão, veio ter comigo e disse-me, "desculpe, acha que podia ver outra vez o filme? É que quando vejo um filme é como se me dissessem, aqui sinto isto e ali rio-me e aqui penso desta maneira. E com o seu filme não. Posso ser eu própria a vê-lo.' Virei-me para a minha mãe e disse-lhe, 'pronto, já posso morrer feliz.'"

Valérie Massadian solta uma gargalhada.

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