Noites na ópera do Coliseu

Para quem não tem memória directa desses tempos, é hoje difícil de imaginar como nas récitas do Coliseu havia milhares de espectadores. Sim, no Coliseu a ópera era um “grande espectáculo popular”.

A noite da passada quinta-feira, 19 de Outubro, fica memorável pelo regresso da ópera ao Coliseu dos Recreios em Lisboa – onde uma produção do teatro nacional de ópera, o São Carlos, não era apresentada desde 1994 – com a Turandot de Puccini em versão de “concerto encenado”. E fica memorável por dois motivos: o espectáculo em si com o entusiasmo que suscitou e propriamente as memórias que trouxe de volta das noites na ópera no Coliseu.

Durante décadas a sala tinha uma temporada própria, e essa era “a temporada de ópera” tanto mais que o São Carlos esteve largos anos encerrado; era um empreendimento artístico mas também empresarial. O teatro nacional reabriu oficialmente em 1940, quando do “Duplo Centenário”, da independência e da restauração, grande encenação comemorativa do salazarismo, com uma ópera alusiva, D. João IV de Rui Coelho, mas só em 1946 reiniciou as suas temporadas regulares. Entretanto a temporada própria do Coliseu finou-se e então, a partir de 1959, o São Carlos passou a apresentar aí as “récitas populares”.

O esquema era assim: no São Carlos havia a estreia, a récita de gala, e a de domingo à tarde, e depois, embora só para o repertório mais standard, a “récita popular” no Coliseu.

Para quem não tem memória directa desses tempos, é hoje difícil de imaginar como nas récitas do Coliseu havia milhares de espectadores, milhares mesmo, apreciadores e conhecedores, havendo os grandes momentos de aplauso em que “a casa vinha abaixo” mas também pateadas. Sim, no Coliseu a ópera era um “grande espectáculo popular”.

Comecei a frequentá-lo no início dos anos 70, seguramente desde 1972, a primeira temporada que aí segui na íntegra. E tantas, tantas memórias ocorrem: na Norma de Bellini, uma protagonista, Montserrat Caballé, fula com o sucesso da estreante Viorica Cortez, Adalgisa (a Caballé voltaria momentosas vezes para concertos em Portugal, mas nunca para uma ópera); a estreia em Portugal do Porgy and Bess de Gershwin, êxito tal que foi repetido no ano seguinte (já no São Carlos estava, desde 1970, o mais esclarecido dos directores, João de Freitas Branco); o primeiro sinal em Portugal de um Wagner “moderno” com a direcção de Silvio Varviso de A Valquíria. Etc., etc.

Mas duas memórias sobrelevam.

A 24 de Abril de 1974 foi apresentada La Traviata de Verdi, com a máxima diva da época, Joan Sutherland, Alfredo Kraus (que se tornara anos antes internacionalmente conhecido quando, com “la divina” Callas, cantou a mesma ópera no São Carlos) e um estreante que já se anunciava excepcional, Renato Bruson, direcção de Richard Bonynge. No final “la stupenda” foi inundada de flores, entre as quais… cravos vermelhos! A excitação foi tal que fomos celebrar e, quando passadas horas cheguei a casa, chegou o telefonema tão ansiado, “Já estão na rua”! Foi uma noite em branco, essa de 24 para 25 de Abril de 74.

Em 1978 houve outro Verdi absolutamente excepcional, um Trovador com Vincenzo Bello, Mara Zampieri, Fiorenza Cossotto e Piero Capuccilli, direcção do veterano Francesco Molinari-Pradelli, e a casa veio completamente abaixo com o “D’amor sull’ali rosee” da Zampieri, deixando nos bastidores uma Cossotto petrificada.

Kraus e Cossotto eram na altura os ídolos maiores, seguir-se-ia a Zampieri.

Já agora diga-se que no Coliseu havia não só ópera como também concertos, por exemplo quando dos Festivais Gulbenkian, até 1970. Inclusive houve um recital de piano (!!!), com o lendário Arthur Rubinstein, trazido pela dilecta amiga Olga do Cadaval. E poucas semanas antes do 25 de Abril Lorin Maazel dirigiu um extraordinário Requiem de Verdi, com Pilar Lorengar, a Cossotto (que, vindo substituir Josephine Veasey, entendeu, péssima colega que era, cantar sem partitura, como que para rebaixar os restantes), Veriano Luchetti e Hans Sotin. E mesmo o São Carlos organizou aí um concerto único, com outra lenda, o baixo Boris Christoff, que cantou não só, inevitavelmente, a “Coração e Morte de Boris” do Boris Goudonov de Mussorgski, como surpreendeu no género buffo com “La callunia” do Barbeiro de Sevilha de Rossini.

Só que depois houve dois desastres.

Em 1980, João Paes, que sucedera a Freitas Branco na direcção do São Carlos, foi substituído por Serra Formigal, no que, com grande polémica, designei por “aliança FNAT/PCP”, FNAT, antepassado do actual Inatel, designando Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, na dependência do Ministério das Corporações, designações tipicamente salazaristas. Tinha ele sido o director da “ópera popular”, com a Companhia Portuguesa de Ópera no Trindade. E com a sua nomeação o São Carlos tornava-se “nacionalista, nacionalizado, nosso” e “popular”, tanto que… acabou com as “récitas populares” no Coliseu!

E depois houve o inconcebível. As obras de reabilitação do Coliseu dos Recreios para a Lisboa-94, Capital Europeia da Cultura, deram cabo da acústica da sala! Inconcebível mesmo! Daí só agora o regresso da ópera como “concerto encenado”, quase todo cantado à boca de cena, que uma ópera mesmo, devidamente encenada, não tem condições, nem há fosso para a orquestra.

E etc., etc., que agora as emoções desta Turandot foram indissociáveis das memórias que voltaram e que, sendo pessoais, também são histórias e uma História que urge ficar devidamente registada por escrito. E que haja mais!

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