Eles só dormiram quando a chuva chegou

Na noite dos brutais incêndios de 15 de Outubro, os autarcas das freguesias afectadas pelo fogo tiveram de se dividir entre salvar os seus bens e acudir à população pela qual são responsáveis. Seis deles contam como foram essas horas.

Foto

Quinta-feira de manhã. Na estrada que liga São Jorge a São Joaninho, em Santa Comba Dão, ainda permanece o esqueleto carbonizado do que foi um pequeno veículo motorizado, daqueles que se podem conduzir sem carta. É só um monte de ferros retorcidos, onde se reconhecem as rodas e pouco mais. Está ali, meio caído na berma, contra um solo preto de carvão, que cobre toda a paisagem, depois da passagem do devastador incêndio de 15 de Outubro que, naquela zona, deixou cinco mortos. O condutor do veículo foi um deles e o funeral realizava-se naquela quinta-feira à tarde. O homem, de 67 anos, decidiu fugir quando as chamas lhe atingiram a casa. A mulher ficou, escondeu-se e salvou-se. Ele meteu-se pela estrada, foi apanhado pelo fogo, abandonou o pequeno carro, fugiu a pé mas o incêndio foi mais rápido. Morreu ali.

Mas ficar também não era garantia de salvação naquele domingo de ventos demoníacos e chamas galopantes, com pedaços de madeira a arder que voavam pelos ares, causando projecções “de quilómetros”, como ouvimos ao presidente da Câmara de Oliveira do Hospital, José Carlos Alexandrino, na quarta-feira, pouco antes de receber um empresário cuja fábrica ardeu completamente. “Uma senhora morreu à porta de casa, do lado de fora. O cão tentou protegê-la e tinha o corpo queimado pela metade. Impressionante. Outra senhora não quis fugir, ficou em casa, mas ela ruiu e morreu lá dentro.” Naquele dia, ainda havia dois corpos soterrados em habitações do concelho, e, na quinta-feira, a descoberta de um novo corpo em Avô faria subir para 43 as vítimas mortais em todo o país, nove das quais em Oliveira do Hospital.

Por toda a zona centro está a ser difícil recomeçar, perante a imensidão dos 506 mil hectares ardidos, 44 pessoas mortas, mais de 70 feridos, dezenas de empresas destruídas e centenas de pessoas desalojadas. Cinco dias depois do incêndio ainda há várias localidades sem luz, conseguir uma ligação telefónica é uma roleta russa e encontrar uma pequena mancha de verde na paisagem enegrecida e queimada é, em alguns locais, impossível. Em Real de São Joaninho, Cesaltina Figueiredo, 68 anos, lamenta a morte de quase três mil pintos no aviário situado no topo de uma colina, não muito longe da casa onde vive com o marido, José. Dois mil salvaram-se e enchem agora de barulho e movimento o barracão com a cobertura interior ardida e a cair aos farrapos. Num dia nublado, como se o fumo cobrisse ainda a paisagem, apesar de já ter chovido, a mulher descreve: “Mas quando vem o sol e olhamos à volta ainda é pior. É de ficar com o coração tão negro como este solo.”

O presidente da Junta de Freguesia de São Joaninho, Pedro Cruz, tem os olhos vermelhos, como se tivesse estado a chorar incessantemente ou não dormisse há dias. Não confessa qualquer uma destas situações. Mas diz que não sabe como a sua gente se vai reerguer. “Para recomeçar tudo outra vez, vai demorar. As pessoas dizem-me: ‘Vou para fazer alguma coisa e perco a coragem.’ Perderam tudo, não há um palmo de terra onde houvesse vegetação seca que escapasse. Foi tudo, tudo, tudo.” Uma carrinha pára a alguns metros, o condutor chama pelo autarca. Quer saber quando vão recolher os animais que lhe morreram junto ao aviário que se avista dali. É irmão de outra das vítimas mortais de São Joaninho, um homem que morreu asfixiado, perdido no meio do fumo, precisamente quando tentava salvar aquele aviário.

Em Seixas, povoação de Seixo da Beira, Margarida Claro está junto de um conjunto de casas ardidas, no coração da povoação. O fogo saltou de casas devolutas para outras habitadas e ninguém o conseguiu parar. Só nesta freguesia de Oliveira do Hospital, com menos de dois mil habitantes, há quatro famílias desalojadas. Margarida já fazia parte do executivo da junta, nas últimas eleições foi eleita presidente. É para ela que uma moradora se volta, apontando as ruínas de uma casa ardida, que tomba para a rua. “Há que tempos que digo que era preciso demolir isto, porque os donos estão para o Brasil e está para aqui abandonado. Calha-lhe a si”, diz. Margarida diz que sim, que agora a ruína vai mesmo abaixo.

No domingo e durante a madrugada de segunda-feira, os presidentes das juntas das povoações afectadas pelo fogo tiveram que se dividir em dois — lutavam para salvar as suas casas, mas também para ajudar os moradores das freguesias pelas quais são responsáveis. Deram indicações a bombeiros, combateram o fogo ao lado dos vizinhos, quando não havia bombeiros. Depois de as chamas passarem, contaram os mortos, os desalojados e estão agora a tentar responder às perguntas de quem precisa de ajuda. Houve os que não conseguiram apreender toda a dimensão da tragédia porque ficaram presos nos locais onde viviam e os que nem quiseram saber do que acontecia com as suas casas. José Paulo Menezes, presidente da Junta de Freguesia de Boa Aldeia, Farminhão e Torredeita, em Viseu, tem um sorriso sereno quando diz: “Nem pensei nos bens pessoais. Todos os bens que ardiam naquela noite eram também meus. É um bocado isso ser presidente da junta.”

Aqui fica o relato de como foram os dias 15 e 16 de Outubro para seis autarcas que viram as suas freguesias ser engolidas pelas chamas.

Foto

“Disse um bocado mal da minha vida”

Carlos Maia, União de Freguesias de Ervedal e Vila Franca da Beira, Oliveira do Hospital

Carlos Maia tem um arranhão no nariz, ainda fresco. “Foi na noite do incêndio, num arame num quintal. Fui lá tentar apagar o fogo, não vi o arame e pronto.” Sorri ao lembrar o episódio, mas há poucos minutos não conseguira conter as lágrimas quando recordava a aflição de, na noite de domingo, tentar chegar a Ervedal da Beira, onde está agora, junto a uma fábrica de derivados de madeira que ardeu na totalidade. Pelas 20h, quando já dois grandes incêndios cercavam o concelho, foi para Oliveira do Hospital, onde reside, mas assim que percebeu que as chamas se estavam a aproximar da freguesia a que preside, regressou. “As comunicações eram complicadas, deixou de existir luz e eu atravessei um incêndio na estrada para cá chegar. Foi complicado, disse um bocado mal da minha vida.” O que é que se faz numa situação dessas? “Acelera-se pouco, porque havia muito fumo. Tem de se vir devagar e com as chamas de um lado e do outro da estrada… Foi um momento que… Enfim, vai ficar registado. Como tudo isto que aconteceu”, conta.

Naquela freguesia beirã não houve mortos, mas há três feridos queimados. Um deles é uma funcionária da junta, internada agora em Lisboa, que foi apanhada pelas chamas quando o carro em que tentava fugir com um sobrinho se despistou. Há também quatro famílias desalojadas, fábricas ardidas, muitas ovelhas que fornecem o leite para a famoso queijo da serra da Estrela mortas.

A noite, diz, foi vivida “com toda a gente na rua, em pânico, a lamentar-se, a chorar”. E a lutar. A pouca ajuda dos bombeiros só chegou madrugada fora. Até lá, foi a população que tentou travar o avanço das chamas. “Nunca tinha visto um cenário destes na minha vida. Já assisti a fogos florestais grandes, mas dentro da povoação nunca se tinha visto uma coisa destas”, diz o autarca, prestes a iniciar o terceiro mandato na freguesia. “Estivemos a lutar como podíamos, mas fomos completamente impotentes perante o que se estava a passar e com a rapidez com que se desencadeou. Não tivemos hipótese. Houve pequenas coisas que foram salvas, junto às habitações, mas em alguns casos não se conseguiu. As labaredas, as fagulhas com o vento passavam de uma casa para outra e foram incendiando tudo. Estava cada um entregue a si mesmo. Foi uma noite com um pânico tremendo.”

Ninguém dormiu. Carlos Maia apoiou os vizinhos e conseguiu salvar também os seus bens. De manhã, depois de o fogo passar, diz que foi à cama “uma hora” e, depois, foi fazer-se à estrada para apreender tudo o que é preciso fazer. “Foi muito duro depois ouvir as pessoas, o que lhes aconteceu. Há gente sem habitação, a quem ardeu tudo, que está na miséria, sem nada. Ainda estamos a ver como vai ser, estamos a tentar que tudo seja minimizado.”

Na terça-feira os autarcas locais já se tinham reunido com o presidente da Câmara de Oliveira do Hospital, recebendo instruções para que fizessem o levantamento das necessidades em cada uma das suas freguesias. Procuram-se casas para quem precisa e perceber que apoios haverá para reerguer as empresas, sustento único de muitas dezenas de moradores. Já o verde que desapareceu da paisagem, deixando tudo de uma cor negra de morte, vai ser difícil de recuperar e os novos tons que pintam os montes em redor são a lembrança omnipresente do que ali se passou. A floresta, verdadeiro pulmão verde espalhado pelo concelho, ganhou contornos de ameaça, depois de domingo. “Temos de viver com ela, ter ânimo e coragem. Foi muito, muito duro”, diz Carlos Maia, que, antes de se despedir, confessa: “Entretanto, já dormi alguma coisa. Mas a gente acorda, não está a dormir descansado.”

Foto

“Cada localidade, cada sítio, tratou dos seus, porque não houve outra hipótese”

Margarida Claro, Freguesia de Seixo da Beira, Oliveira do Hospital

Na manhã de domingo, quando as chamas começaram para o lado de Seia, Margarida Claro lembra-se de ter pensado: “Lá anda a [serra da] Estrela a arder outra vez.” Naquela altura, não lhe passou pela cabeça que a freguesia a que agora preside (a tomada de posse estava marcada para esta última sexta-feira) fosse atingida pelas chamas. Mas, ao final da tarde, quando o fogo chegava ao rio Seia, que divide o concelho com aquele nome do de Oliveira do Hospital, a preocupação cresceu. “Tivemos a noção de que se o fogo passasse o rio, estávamos lixados. Mas nunca achámos que fosse desta forma, até começarmos a ver os focos de incêndio do lado de Nelas, de Oliveira do Hospital e de Seia. De repente, havia fogo por todo o lado, e à hora de jantar já não havia controlo de nada”, conta.

Margarida ficou presa em Sobreda, onde vive. Ainda pensou sair para ir ver como estava a mãe, mas quando se preparava para deixar a casa percebeu que já tinha chamas num quintal ao lado. Os acessos desapareceram, a possibilidade de ir para onde quer que fosse igualmente. E de os bombeiros chegarem para ajudar também. A partir de determinada altura, nem água havia. “As populações uniram-se, tentaram salvar o vizinho, mas quem veio ajudar percebeu que também já tinha a casa a arder… É… Sem palavras… Foi uma noite muito difícil”, desfia.

A nova presidente da junta, que já integrava o executivo anterior, nunca deixa que a voz lhe trema ou que uma lágrima lhe ensombre o olhar. Mesmo quando confessa que tudo foi “muito aflitivo” e que chegou a temer o pior. “Sabíamos que havia casas a arder na povoação e houve uma altura em que achámos mesmo que não havia solução. Pensámos: vamos fechar-nos em casa, porque aí não temos fumo e conseguiremos sobreviver e, quando isto acalmar, vamos sair e ajudar. Mas era impensável. Foi mesmo, cada localidade, cada sítio, tratou dos seus, porque não houve outra hipótese.”

Margarida quis mostrar o centro de Seixas onde quatro famílias estão agora desalojadas. Uma delas, um casal com um filho de 14 anos e uma menina de quatro, com o homem do casal a deslocar-se em cadeira de rodas. “Perderam tudo, não têm mesmo nada”, diz, junto à casa que agora é só algumas paredes enegrecidas. “Aqui atrás havia casas devolutas. O fogo foi passando de umas para outras. Este núcleo ardeu todo”, conta a autarca. E, como se não bastasse a devastação de domingo, mais uma casa ardeu na noite de terça-feira. “Deve ter ficado alguma coisa a arder na madeira do sótão, de que ninguém se apercebeu e aconteceu isto. E eu tinha pedido à população para que toda a gente que tivesse este tipo de telhados com madeira os verificasse, porque na noite anterior tinha acontecido o mesmo na minha localidade. Do nada, depois de tudo apagado, começou a arder uma casa. O fogo estava escondido, pode estar silencioso.” Na mais recente casa ardida nas Seixas morava um homem, que está agora a abrigar-se num barracão, enquanto aguarda por uma solução.

Na quarta-feira, Margarida Claro não sabia ainda qual seria essa solução, mas uma decisão já estava tomada. “Neste momento, é esquecer todas as obras que estavam planeadas e canalizar todas as verbas e mais alguma para estas situações. É claro que temos apoio da câmara, mas se tivermos um metro de alcatrão para colocar, ele vai ficar por colocar, enquanto aquela pessoa não tiver uma camisa para vestir, um prato de comida na mesa. Isso, agora, é o fundamental.”

Ser autarca, diz, fê-la olhar aquela noite terrível com outros olhos. “É um sufoco enorme, sempre a tentar perceber o que se está a passar nos outros sítios e não conseguir… E sabermos que onde estamos não conseguimos ajudar, mas também não conseguimos sair para ajudar ninguém.” De caderno na mão e telemóvel, vai agora continuar a percorrer a freguesia, a maior do concelho de Oliveira do Hospital. Margarida não tem mortos para contar nem empresas para erguer (não existem, simplesmente, na sua freguesia envelhecida), mas a desolação das Seixas, com as suas casas ardidas, não a impede de dizer: “Foi mau em todo o lado, mas em Seixas, se calhar por estar metida num fundo, foi o pior.”

Foto

“Enchi o balde com vinho e apaguei o fogo com ele”

Pedro Cruz, Freguesia de São Joaninho, Santa Comba Dão

Na tarde de quinta-feira, o presidente da Junta de Freguesia de São Joaninho tinha mais um funeral de uma das cinco vítimas do incêndio do dia 15 de Outubro. Não era o último, e os olhos vermelhos no seu rosto fechado parecem parados num ponto fixo, para lá deste momento. À sua volta, os baldios onde morreram duas pessoas na noite de domingo estão de um negro absoluto. Naquela zona, o preto deixado pelas cinzas parece mais forte do que em qualquer outro local por onde passámos. Olha-se para o chão e vê-se carvão. As raízes que ainda ardem debaixo do solo continuam a expelir nuvens de fumo para o exterior. Apesar de a terra estar molhada pelas chuvas que caíram entretanto.

Quando se deitou no domingo passado, Pedro Cruz achava que o fogo que se via na serra da Felgueira não viria para a sua freguesia. O vento forte puxava-o em direcção oposta. Ainda foi a São Jorge por duas vezes, mas não havia problemas. “Pelas onze de noite parecia que estava tudo bem e eu pensei, vou dormir, vou descansar que ele é capaz de já cá não chegar.”

Nem meia hora conseguiu repousar. Acordou com os gritos de uma vizinha a chamá-lo. “Vim à janela e vejo tudo a arder dentro da povoação. Olho para o carro e um tapete que tinha caído com o vento estava a arder, mesmo à beira da roda. Nem me calcei, só vesti as calças e quando vou para abrir a torneira, não havia água. A solução foi que tinha lá vinho, enchi um balde com vinho e apaguei o fogo com ele.”

Tal como Margarida, Pedro Cruz não conseguiu acudir a ninguém. As chamas entraram pela povoação, arrasando edifícios devolutos, terrenos, barracões com animais. Pelas estradas da freguesia ficavam cinco mortos. O autarca só o descobriu no dia seguinte, porque naquela “noite de pânico” não houve tempo para nada. “Passei o tempo todo de volta da minha casa. Perdemos as comunicações e não tivemos aqui bombeiros, mas também não havia bombeiro que fizesse aqui alguma coisa da maneira que isto galopava, só meios aéreos”, diz. Mas o presidente da junta sabia que coisas estavam mal. “A minha casa fica num alto e vi que estava muito complicado. Eu via as casas a arder, via tudo a arder, os sinos tocaram a rebate, mas ninguém saiu de ao pé das suas casas. Não podia. Cada um estava ocupado com o que era seu e assim se salvou muita coisa”, conta.

Na manhã seguinte chegaram as notícias dos mortos. O homem que tentara fugir em São Jorge. O irmão do dono do aviário que se perdeu no meio do fumo embateu com a motorizada que conduzia contra uma rede e morreu asfixiado encostado a um penedo, ao pé do sítio onde Pedro Cruz fala agora. O amigo daquele homem que, também a tentar ajudar, morreu no baldio em frente, no meio das chamas. O casal que ficou tão carbonizado dentro do carro que se despistou enquanto fugia que só quando alguém espreitou para o interior do veículo se percebeu que havia gente lá dentro. “Está tudo muito pesado e continua muito pesado. As pessoas estão desmotivadas, ninguém tem força para trabalhar, parece que se desmoronou tudo”, diz o autarca.

Pedro Cruz zanga-se quando se queixa por o presidente da Câmara de Santa Comba Dão ainda não ter ido visitar a freguesia. “Eu sei que houve casas ardidas nas freguesias vizinhas, mas temos aqui cinco mortos e o presidente da câmara ainda cá não veio confortar as famílias. Eu fui o único autarca do PSD que ganhei no concelho [socialista] e desde as eleições que ando farto de tentar ligar ao presidente. É triste. Estar aqui, não saber o que se há-de fazer e não aparecer para dizer qualquer coisa às pessoas.” Leonel Gouveia, o presidente da câmara, foi ao funeral das vítimas, mas mais nada, lamentava-se Pedro Cruz na quinta-feira.

Entre os troncos calcinados dos pinheiros que preenchiam os baldios, Pedro Cruz ergue os braços e pergunta: “Para onde vai isto agora?” É que as empresas que cortavam e utilizavam esta madeira também arderam. “Quem vai absorver isto?”, insiste, dizendo que se os despojos do incêndio ali ficarem, daqui a poucos anos serão apenas combustível imparável para a repetição da tragédia.

Foto

“Todos os bens que ardiam naquela noite eram também meus”

José Paulo Menezes, Freguesia de Boa Aldeia, Farminhão e Torredeita, Viseu

Durante toda a noite de domingo o telefone de José Paulo Menezes não parou. Foi para ele que ligaram os moradores de Boa Aldeia a dizer que havia incêndios no meio da povoação. “Acontece muitas vezes ligarem para o presidente da junta, em vez de para os bombeiros. As linhas dos bombeiros também estavam sobrecarregadas”, sorri.

Depois do aviso sobre o que se passava em Boa Aldeia, foi ele que ligou ao vice-presidente da Câmara de Viseu, a dizer que precisava de bombeiros ali. “Felizmente chegaram, com um camião-cisterna”, diz. O aviso de Boa Aldeia chegara quando ia a caminho de Torredeita, porque a primeira informação que recebeu da câmara foi a de que talvez fosse preciso evacuar a povoação. Mudou de destino quando percebeu que no outro ponto da sua freguesia as coisas estavam mais complicadas. “Vi populares a regarem os telhados das casas, em desespero, mas chegou a cisterna e os bombeiros fizeram o primeiro ataque, relativamente bem-sucedido. Só que os reacendimentos começaram em todo o lado.”

José Paulo Menezes passou a noite a percorrer as localidades da sua freguesia. Quando as comunicações faltaram, ia a Torredeita, num ponto alto, com rede, para conseguir pôr-se em contacto com as autoridades, antes de regressar a Farminhão, porque era ali que, agora, precisavam de ajuda. Na própria casa, diz, não pensou mais. “Nem pensei nos bens pessoais. Todos os bens que ardiam naquela noite eram também meus. É um bocado isso ser presidente da junta.”

Ali, a noite tornou-se dia, e o presidente da junta esteve sempre a trabalhar. Era ele que sabia da existência de uma casa bastante isolada na freguesia, e foi o secretário da junta que guiou os bombeiros até lá. “O senhor não sabia o que se estava a passar, ficou completamente desesperado, desnorteado. Foi metido quase à força no carro dos bombeiros.”

No ano passado, o fogo já andara na freguesia, mas nada que se comparasse com o que se passou este ano, diz. Ainda que as consequências, por ali, tenham sido das menos graves. Não arderam casas nem se perderam vidas. Morreu um ou dois animais, diz, e ficaram queimados terrenos e utensílios agrícolas. Além do pinhal. “Agora é preciso ter cuidado, fazer uma reflorestação cuidada. Nos meus terrenos privados não entra eucalipto.”

O incêndio de domingo transformou-se no incêndio de segunda-feira, dia fora, com reacendimentos que se iam conseguindo apagar porque os acessos nunca foram cortados. Mas o descanso só chegou quando começou a chover, já pelas 2h30 de terça-feira. Aí, o presidente da junta parou. “Fui para a cama exausto, mas deitava-me, dava conta de que não estava a chover e ia à janela espreitar. Só quando percebi que a chuva já caía é que dormi.”

Foto

“Fui um bocadinho chato”

José Seabra, União de Freguesias de Fail e Vila Chã de Sá, Viseu

Feitas as contas, a freguesia a que José Seabra preside “acabou por não arder muito”, mas as coisas podiam ter sido feias e o presidente da junta sabe que contribuiu para que o fogo fosse travado. Está a iniciar o segundo mandato e confessa que ficou sem saber o que fazer quando lhe disseram, pelas 2h de segunda-feira, que podia ter de evacuar parte da localidade. “Isso custou-me muito. Nunca tinha feito tal coisa, não sabia como era possível. Veio a PSP perguntar se estávamos a evacuar os locais da frente de chamas e tivemos de tirar algumas pessoas daqui”, conta.

Aqui é um alto em Vila Chã de Sá, Viseu, junto ao campo de futebol, de onde se vê, lá em baixo, o local onde o fogo foi travado. À volta há mata, muitos pinheiros bravos e mansos. “Estávamos a ver que o fogo se ia espalhar, mas o vento parou e foi a nossa salvação”, diz. Porque, mais à frente, para lá da linha que separa a área queimada do que ficou por arder, havia uma zona de armazenamento de gás, um armazém de madeiras, uma fábrica de tintas. “Quando chegou uma equipa de bombeiros que vinha já da Boa Aldeia, conseguimos estancar o fogo ali em baixo, com a informação que demos. Foi importante estarmos aqui”, diz.

Foi aí que o presidente da junta admite ter sido “um bocadinho chato”. E sorri ao dizê-lo. “Os bombeiros queriam ir por outro lado, mas a gente insistiu: tem de ser ali. Eu disse, pelo outro lado não dá, esqueçam. Têm de o segurar ali. E conseguiram travá-lo onde a gente insistiu. No final, o comandante disse-me: ‘Tinha razão, tinha razão’.”

O conhecimento do terreno foi essencial, diz. Isso e o trabalho conjunto da população, dos bombeiros e do pessoal da junta. Foram eles, os membros da junta, que andaram a tentar salvar uma casa isolada, sem acessos para carros de bombeiros. Conseguiram. O balanço final é só de perda de área verde. “Correu bem”, diz José Seabra. Mas podia ter corrido muito mal. “Havia um verdadeiro barril de pólvora ali à volta.”

Foto

“Não era assim que eu queria acabar o mandato”

Joaquim Vidal, Freguesia de Vieira de Leiria, Marinha Grande

Na terça-feira, ainda não havia forma de Joaquim Vidal falar do incêndio que lhe matara o pinhal de Leiria e entrara dentro da vila de Vieira de Leiria sem que um soluço lhe embargasse a voz. As lágrimas a querer saltar-lhe dos olhos, os soluços controlados fazendo pausas forçadas nas palavras.

Está junto à casa completamente ardida de um primo, com a mata queimada e desolada à sua frente e deixa sair um lamento. “Quando alguma coisa corria mal, ia para a mata gritar. Agora não tenho mata para gritar.”

E tanto lhe apeteceu gritar desde domingo, quando as chamas irromperam, loucas e imparáveis, pela vida da sua freguesia dentro. Em 2003, já por ali andara um incêndio, mas o autarca enxota-o, rápido: “Esse foi um menino ao pé deste”, disse. Joaquim Vidal passou a noite junto do comando das operações, a alertar para os núcleos dispersos de casas, a ver as matas em redor soçobrarem, impotentes. “Os ventos sopravam de todo o lado, foi um inferno. Havia bocados de madeira incandescentes que voavam pelo ar. Os bombeiros tiveram um trabalho fora do normal, foram incansáveis, extraordinários, mas não era possível combater aquilo”, diz.

No final, não se perderam vidas, mas muitas casas. E o pinhal, o pinhal cuja perda dói tanto ao autarca. Confessa — e não parece estar a brincar — que tem “um problema em casa”, porque, preocupado com a população, esqueceu-se de que também tinha uma casa para defender, e quase chegava tarde de mais. “A gente não pensa, quer é resolver todas as situações.” Passadas as horas de pânico, mas não a dor do que viu, reage: “O que interessa é que as pessoas não foram fisicamente afectadas. O inferno não deve ser assim. Era uma coisa monstruosa, isto a arder por todo o lado, o medo, o pavor…”

Solta mais um lamento: “Não era assim que eu queria acabar o mandato. Fiz um bom trabalho, é triste acabar assim.” No dia do incêndio, o novo executivo, de que já não fará parte, ainda não tinha tomado posse, mas hoje, Joaquim Vidal já não é autarca e pode, como diz, ir descansar.

Da tragédia que enegreceu os últimos dias do seu mandato, sobra-lhe uma pequena alegria, nascida do desespero. “Esta terra era característica por um bairrismo e solidariedade que se tinha perdido. Com esta desgraça, renasceu. Fez recordar o bom que havia na nossa terra.” No momento da solidariedade, o telemóvel do presidente da junta não parou. “Não paravam de me ligar a oferecerem-se para ajudar, para acolherem pessoas desalojadas, para trazerem alimentos, ajudar os bombeiros.” Isso, diz, “foi extraordinário”. E no meio da tristeza e da partida, fez algo mais por Joaquim Vidal: “Encheu-me o coração.” Agora, só precisa de um bocado de verde para onde ir gritar.

Esta reportagem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

Sugerir correcção
Ler 2 comentários