"O que me falta? Gente"

Vila de Rei seria a metáfora de um Portugal de gentes amáveis e receptor de reformados. Sem agricultura, indústria e um turismo incipiente com o mau cartão-de-visita dos incêndios.

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“Esta é que era uma oportunidade para assaltar as casas, estamos aqui todos.” O desabafo é de um dos habitantes de São João do Peso, uma das três freguesias do concelho de Vila de Rei, que há uma semana, 15 de Outubro, reuniu o plenário dos cidadãos para eleger os órgãos autárquicos. No salão nobre da casa do povo, o palco oculto por cortinas de outras funções, estavam 66 dos 126 eleitores. Votação válida porque superou folgadamente o mínimo exigido de 10%. Em hora e meia, viveu-se a democracia: a lista das “três Marias” do PSD — Maria do Rosário, Maria Manuela Silva e Maria Manuela Henriques —, a única apresentada, reúne a esmagadora maioria, com apenas dois votos brancos. Maria do Rosário Cavalheiro, 54 anos, vai para o terceiro e último mandato como presidente da junta. “Que me falta? Gente”, desabafa.

“Não vos posso prometer muito, mas todos juntos, com ideias deste e daquele.” O discurso da presidente eleita é curto e aplaudido. “Rita, posso ir-me embora?”, pergunta um vizinho impaciente. “Ainda não”, responde a jovem de 26 anos que dirige os trabalhos, filha da presidente a quem se antevê já a continuidade familiar à frente de uma das seis freguesias do país com menos de 150 cidadãos eleitores. Nestes casos, segundo a legislação eleitoral, a assembleia de freguesia é substituída pelo plenário de cidadãos. As outras cinco freguesias são nos Açores: Fajãzinha, Lajedo, Mosteiro, Caveira e Cedros.

A eleição tem a solenidade do voto secreto. Uma alteração ao regimento introduziu esta fórmula que substitui, pela primeira vez, a votação de braço no ar. “Para evitar problemas entre pessoas”, justifica a presidente momentos antes da reeleição. Temia que num universo tão pequeno, entre vizinhos e amigos, a pugna eleitoral inibisse a livre opção e criasse problemas. O braço no ar voltará para as decisões do quotidiano, das sonhadas obras.

Mas há uma adaptação às necessidades. Os doentes votam primeiro. É o caso de Maria da Conceição, a braços com problemas de coluna. A Maria Luísa Portela, 84 anos, é também permitido saltar a ordem e antecipar o exercício do direito. “Tenho de regressar a Tomar”, explica. Ainda é o caso de outra moradora, que espera o telefonema dominical da filha, emigrante na Alemanha.

“Presente” é a exclamação de um habitante quando o seu nome é pronunciado. Recolhe o boletim impresso momentos antes, quando foi confirmada a presença em liça de uma única candidatura, e dirige-se ao biombo. A assistente mais idosa, de 99 anos, é amparada até ao voto. A média etária dos habitantes ronda os 80, e entre os eleitores estão, também, 11 internados no lar da terra, vindos de outras paragens. Mas entre os assistentes, devidamente saudado, está o benjamim: Duarte, cinco meses, nascido em Maio, neto de uma algarvia que, com as duas filhas, encontrou há anos refúgio em São João do Peso para os maus tratos que sofria.

Inscrito no caderno eleitoral está, ainda, um casal belga, Lieve Burssens e Herwig Bomon, residentes na terra há 15 anos, com um discurso dissonante. “Aqui não falta nada, pode ficar como está, gosto assim, não tem de ter evolução nem tem de crescer, talvez para os velhos um médico”, concede Lieve. “Quando chegámos, a minha filha teve muita ajuda dos professores na escola, ela não falava português, dizia ‘obrigada’ e ‘melancia’, mas no fim do quinto ano fez todos os testes em português”, recorda agradecida. “Para ajudar, para ser mais um”, faz questão em votar. 

No “pior dia do ano”, a vaga de incêndios de 15 de Outubro, pela primeira em vez São João do Peso substituiu o voto em urna pela votação de braço no ar para, num mundo pequeno, de 126 eleitores, evitar susceptibilidades
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No “pior dia do ano”, a vaga de incêndios de 15 de Outubro, pela primeira em vez São João do Peso substituiu o voto em urna pela votação de braço no ar para, num mundo pequeno, de 126 eleitores, evitar susceptibilidades

“Isto está tudo vadio”

“Este é o coveiro”, precisa um dos assistentes, apontando a um homem de meia-idade e pequena estatura. Há um burburinho na sala. “É preciso estar de boas relações com ele”, ironiza. O coveiro é o único funcionário a tempo inteiro da freguesia, agora designado como assistente operacional, que vai fazendo outros trabalhos de manutenção, com o apoio de dois desempregados indicados pelo Centro de Emprego.

“Dá isto por encerrado, está tudo a favor, há quem precise de ir regar as hortas antes do jantar”, recomenda Vicente Pires. Camisa florida, calças brancas, tem uma longa história de vida fora do Peso. “Sou armador de ferro, estive com uma empresa da Suíça nas obras do Kuwait, em Berlim, na Alemanha, após a queda do muro, mas fui enganado por uma empresa portuguesa, agora estou nas Caraíbas, na ilha de São Bartolomeu, volto dentro de três dias depois daquele desastre todo”, anuncia, referindo-se à devastação pelo furacão de Setembro: “Somos três mil portugueses em 24 quilómetros quadrados, era o que precisávamos aqui em São João do Peso.”

Vicente é uma figura popular. É dos mais jovens da freguesia, tem 53 anos, é proprietário de um dos dois cafés e tem um objectivo. Ao arrepio da negra tradição: “Vou regressar, estou a pensar em criar aqui gado, isto está tudo vadio e os meus filhos já acabaram os cursos.”

Os censos são inclementes: desde 1930, quando a freguesia tinha 603 habitantes, que a perda de população foi consecutiva até aos actuais 133. Os jovens são tão poucos que se conhecem os seus nomes próprios. O benjamim Duarte, o José Maria, a Gabriela, os gémeos.

O mesmo acontece com os óbitos. “A senhora Belmira faleceu”, recorda Carlos, a terminar o mandato de membro da mesa da Assembleia da freguesia, que já vive a 12 quilómetros, em Vila de Rei. Sem rodeios, Maria do Rosário enumera as carências: “O que me falta? Gente.” É a necessidade premente, comum ao concelho despovoado. No censo de 2011, Vila de Rei tinha 3452 habitantes, dos quais 630 com menos de 25 anos. O que, cinco anos depois, em 2016, o tornou o segundo concelho mais envelhecido do país depois de Almeida, segundo o Instituto Nacional de Estatística.

“Precisávamos de equipamentos, de comércio, de indústria na freguesia, Cardigos (terra ao lado do distrito de Santarém) ainda tem uma fábrica de velas que emprega bastante gente”, refere a autarca. “Aqui há famílias importantes, só que fizeram casas, não levantaram empresas”, lamenta. “Devia haver mais actividade para as pessoas virem, eventos, um festival”, diz com olhar sonhador e um sorriso de malícia. “Aqui temos paz, não há engarrafamentos, não há poluição, é tudo muito soft”, resigna-se no balanço.

As contas do haver de São João do Peso são fáceis: uma igreja, sem padre residente; dois cafés; uma junta de freguesia, uma casa do povo, um táxi, um lar de idosos; uma praia fluvial; um armazém de distribuição de farinhas para animais; um autocarro do município que às terças-feiras leva à sede do concelho; nove mil euros anuais da Câmara e 21 mil por ano da Direcção-Geral das Autarquias Locais. O sobressalto dos incêndios, que em 15 de Outubro, o “pior dia do ano”, assolou as terras vizinhas da Sertã e Oleiros, está sempre presente. Numa estrada bordejada por árvores calcinadas e terra cinza está a marca da mais recente devastação das chamas. A desflorestação soma-se ao esquecimento e o envelhecimento desemboca no despovoamento.

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Sobre o rio Zêzere, é o negro que domina até onde a vista alcança, depois de um corredor de fogo em Agosto ter entrado no concelho de Vila de Rei

Estrangeiros inquietos

São nove quilómetros de curvas numa estrada de bom piso marcados pela monotonia da paisagem da desgraça. Do rio Zêzere à localidade de Estevais, a terra mudou de cor. É o negro que domina até onde a vista alcança, depois de um corredor de fogo em Agosto ter entrado no concelho de Vila de Rei. O único verde que resistiu é o de umas quantas árvores à volta das casas que foram defendidas pelos bombeiros e poupadas à destruição. São vales, encostas e picos calcinados. Ainda há cheiro a queimado.

“Ganhei há seis meses em concurso público a exploração do hotel, tinha apostado no turismo da natureza, em percursos de bicicleta, caminhadas, canoagem no rio, passeios de barco, no aproveitamento das praias fluviais e três meses depois foi isto.” Encostado ao balcão da recepção do hotel, Pedroso Leal, 57 anos, sintetiza o antes e o depois do fogo: “Temos quase metade do concelho ardido.”

Solicitador a poucos quilómetros, em Torres Novas, foram as excursões gastronómicas que o trouxeram a Vila de Rei. Está inscrito no projecto 2020 de internacionalização da imagem do concelho, garante haver potencial, acessos rápidos, um pólo industrial e produtos endógenos. Enfim, oportunidades para trabalhar. Mas não esconde que as chamas são um mau cartão-de-visita.

“Recebi um telefonema de uns estrangeiros a perguntar o que se passa.” Na manhã de 16 de Outubro, Ricardo Aires, presidente da câmara que vai iniciar o segundo mandato, confessa a inquietação de uns potenciais investidores perante a vaga de incêndios do fim-de-semana. Nada está decidido quanto ao investimento, mas o autarca de 45 anos não está tranquilo.

Metáfora de Portugal?

“O programa do Governo para a reforma da floresta vai ao encontro das nossas necessidades”, concorda o edil do PSD: “Estamos fora dos sete concelhos [Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos, Castanheira de Pêra, Pampilhosa da Serra, Góis, Penela e Sertã] apesar de muita angústia minha, pois sem cadastro, encostados à área de intervenção pela Sertã, seremos uma acendalha, um barril de pólvora para esse projecto-piloto.”

Dito de outra forma. “Sem cadastro, é impossível começar a fazer o ordenamento da floresta no nosso concelho”, admite o presidente da câmara, reconhecendo que tal tarefa não vai ser popular. Este é um desafio para todos os municípios e também para Vila de Rei, que perdeu outros combates. “As acessibilidades [a A23] chegaram já tarde, se tivessem vindo 20 anos antes, as pessoas não se tinham ido embora, apareceram quando Portugal já estava muito inclinado para o litoral”, lamenta Ricardo Aires.

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Aqui há famílias importantes, só que fizeram casas, não levantaram empresas”, diz Maria do Rosário Cavalheiro, presidente da Junta de São João do Peso

Estes condicionantes ditaram estratégias de desenvolvimento próprias. “O território de Vila de Rei não tem aptidão para a agricultura, como dizia José Cardoso Pires [escritor, natural da freguesia de São João do Peso], é pedras”, refere Irene Barata, 74 anos, que cumpriu seis mandatos à frente da câmara. “Quando havia exploração de resina, havia menos meio quilo por pinheiro que nos concelhos vizinhos, daí ter-me virado para a economia social para dar as condições possíveis de dignidade, pensei muito no bem-estar dos idosos, pois havia muitas carências”, explica.

Contas feitas, a economia social, através de várias IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social), fornece 405 postos de trabalho e é a principal actividade económica. Nas mais diferentes intervenções, de lares a creches, da unidade de cuidados intensivos à ajuda domiciliária, da cantina social ao apoio a deficientes, são assistidas 530 pessoas, das quais 40% vêm de fora do concelho. Dentro de meses, estará em funcionamento um serviço de apoio para vítimas da violência doméstica, o único actualmente licenciado no distrito de Castelo Branco. Como empregador, surge, depois, a Câmara Municipal, com os seus 130 funcionários, a seguir a agro-pecuária — quatro unidades de enchidos — as madeiras e os serviços.

“Criámos três zonas industriais, mas não tivemos grande eco, vieram empresas alemãs do sector têxtil e uma portuguesa de madeiras que só ficaram enquanto duraram os apoios comunitários”, relata a antiga autarca. “Fiquei descrente, daí a aposta na economia social”, justifica.

“O futuro deve passar pelo turismo, temos a albufeira de Castelo de Bode, o centro geodésico”, antevê. O incêndio de Agosto que recebeu o investimento de Pedro Leal no hotel da vila é um óbice. Agora Hotel Vila de Rei, antes Hotel D. Dinis, e sempre pertencente ao município, foi local de trabalho para os cidadãos brasileiros de quatro famílias que Irene Barata foi buscar para travar o despovoamento e a quem deu um contrato de trabalho. “Aquele projecto não falhou, duas famílias cá ficaram, outras duas tiveram problemas de relacionamento afectivo e foram-se embora”, descreve. “Também fiz outra tentativa, em colaboração com a Câmara de Oeiras, trouxe para a residência de estudantes 70 jovens da ilha do Príncipe que vieram estudar até ao 12.º ano e depois seguiam o ensino superior em Lisboa”, relata.

A luta desta terra do interior a braços com incêndios, despovoamento, inaptidão agrícola, inexistência de indústrias, que encontra na economia social a sobrevivência e sonha com o turismo poderá ser premonitória do que vai acontecer ao país? Se assim for, Vila de Rei seria a metáfora de um Portugal de gentes amáveis e receptor de reformados.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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