Governar com as duas pernas

Este Governo precisava não apenas de uma remodelação parcial e de emergência mas de uma remodelação global, aproveitando as lições do passado e a oportunidade que se apresentava.

Foi já quase tudo dito sobre as atitudes contrastantes do Presidente da República e do primeiro-ministro perante a última vaga de incêndios em Portugal. Sobre a calorosa empatia de Marcelo com as populações em sofrimento e a insensibilidade inexplicável de Costa. Sobre a visão política de um e a persistente cegueira do outro. Finalmente, sobre a rendição inevitável do segundo às exigências do primeiro.

A prova de que o Governo não estava preparado para enfrentar a suposta fatalidade que se abateu sobre o país pôde ser confirmada através de declarações da anterior ministra da Administração Interna e do seu secretário de Estado – as populações atingidas deveriam mostrar-se mais “resilientes” e “pró-activas” – ou de uma extraordinária afirmação do próprio primeiro-ministro, segundo a qual o que aconteceu voltaria seguramente a repetir-se, numa confissão gritante da impotência do Estado. Costa continua a ser um caso enigmático de dupla personalidade: o seu excepcional engenho político coexiste com um autismo que o encerra no interior desse engenho e prejudica uma visão estratégica global das funções governativas.

À hora em que escrevo decorriam ainda os trabalhos do conselho de ministros extraordinário sobre as novas políticas a implementar depois da mini-remodelação governamental. Tudo indicava, porém, que essas políticas iriam centrar-se no sector em crise mais notória, afectando gravemente a imagem de um Governo confortado com o triunfo socialista nas autárquicas. Ou seja, Costa e a sua equipa iriam seguir obedientemente as directivas da comissão técnica independente criada por iniciativa de um dos partidos da oposição, o que representa uma confissão de fracasso clamoroso no trajecto seguido até agora.

Mas agora que o Governo parece já não se conformar com a fatalidade e se propõe expiar as culpas passadas, há outra questão que levantei aqui a 17 de Setembro, perante a euforia com que foi acolhida a notícia de o país ter saído do rating “lixo” da agência Standard & Poor’s. E a questão era precisamente esta: sair do “lixo” mas governar com uma perna só (aproveitando uma frase favorita de Costa, segundo a qual não podemos dar passos maiores do que a perna).

“Vai-se tornando cada vez mais evidente – escrevi então – que o problema deste Governo não é o de dar passos maiores do que a perna, mas de parecer, frequentemente, não ter duas pernas mas uma perna só. A perna que funciona é claramente a de Costa e Mário Centeno (…) mas a outra, a que não funciona, afecta grande parte dos membros do Executivo, como se viu com o ministro da Defesa ou a ministra da Administração Interna e também outros, incapazes de gerir as situações criadas pelas restrições orçamentais ou conflitos profissionais nas áreas respectivas (é o caso da Saúde, da Justiça ou da Educação)”. Lembrava então também “a função decorativa ou irrelevante de outras pastas – da Economia à Cultura ou aos Negócios Estrangeiros” para concluir que “fica à mostra o carácter disfuncional do actual Executivo”.

Ora, este Governo precisava não apenas de uma remodelação parcial e de emergência, centrada no reforço da Administração Interna, mas de uma remodelação global, aproveitando as lições do passado e a oportunidade que se apresentava. Pressionado pelos acontecimentos e por Marcelo, Costa apenas fez crescer a perna que antes funcionava mas deixando a outra coxa. O desequilíbrio acentuou-se e aquilo que já não era sustentável há um mês ficou-o ainda mais. Como é que um equilibrista como Costa se recusa a ver esta evidência elementar?

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